Sara Tavares – Fitxadu (2017)

O quinto álbum de Sara Tavares foi o último, mas foi também o primeiro depois do seu confronto com a fragilidade da vida. Aos 39 anos, e oito anos depois de Xinti, a 27 de outubro de 2017, eis que chega Fitxadu. No jornal Público, Gonçalo Frota chamou-lhe o “álbum mais corajoso da sua carreira”, mas desengane-se quem procura os clichés do costume – quando Miguel Azevedo a questiona “Isso quer dizer que este é o seu disco mais pessoal e aquele em que mais se expõe?”, Sara responde “Todos os discos são pessoais e todos eles são álbuns em que me exponho. Todos são feitos com palavras que me saem da boca e do coração.De onde vem, então, a coragem de Sara Tavares? Lidar com um tumor no cérebro (ainda que, na altura, benigno) não foi fácil – no caso de Sara, obrigou-a a equacionar a possibilidade de não voltar a cantar, ou sequer falar. Apesar de ter admitido que, com o tempo, aceitara a possibilidade de enveredar por outros caminhos, felizmente não foi preciso nenhuma dessas escolhas. No entanto, aproveitou para se descobrir também através dos outros e de sons que sempre habitaram a sua vida, mas nem sempre ecoaram pelas suas canções. E agarrou a situação, em jeito de oportunidade, para aproveitar a vida, nutrindo amizades e cuidando das suas relações mais próximas.

“Fiz o álbum meio longe da expectativa dos fãs, fiz mesmo o álbum à vontade, para mim e para os amigos “, contava a Alexandra Oliveira Matos para o Rimas e Batidas, um ano depois da edição do álbum. Isso fez com que se revelasse uma nova Sara – nova para o público, mas não para quem a rodeava – a Sara da electrónica e do hip-hop. Logo na abertura, “Intro – Onda de Som” bate-nos como o título antevê. Os ritmos e a produção de Loony Johnson (sugiro uma audição de volume bem alto e com um subwoofer decente) atravessa-nos de uma maneira com que ainda não nos tínhamos deparado no trabalho de Sara, mas que se tornará cada vez mais evidente até às suas composições finais – a sua voz delicada embrulhada em percussões de caixas de ritmos e sintetizadores.

Os singles “Coisas Bunitas” e “Brincar de Casamento” (com Toty Sa’Med) evocam noites no B’Leza, de mão na cintura e tarraxo cujo balanço pede amor e sedução. “Ter Peito e Espaço” mantém acesa a sua tradição de ter canções quase só acapella, mas os acordes quase soltos de guitarra ecoam no respaldo de um sintetizador que eleva a composição ao seu esplendor de ressurreição. Como Sara renasceu neste disco.

Canções como “Txom Bom” ou “Fitxadu” posicionam Sara bem no centro daquilo que reconhecemos como matriz das suas composições nos álbuns anteriores, com a guitarra como elemento instrumental principal e a percussão rica, mas não exagerada. Também a segunda faixa, “So Sabi”, demonstra que a nossa protagonista não procurava largar a identidade sonora que construíra nos dois registos anteriores, talvez apenas expandir o seu alcance.

Para tal, rodeou-se de outros artistas e, pela primeira vez, abraça um alinhamento quase sempre em co-autoria com outros músicos, seja nas letras, na composição ou na produção. Além de nomes emblemáticos da música cabo-verdiana, como Nancy Vieira (co-assina música e letra em “Ginga”), o álbum ergue-se sobre as fundações de músicos de relevo em Lisboa, a começar pelas teclas de João Gomes (Orelha Negra, Fogo Fogo, Cool Hipnose, Spaceboys e tantos outros projectos), passando pelo talento dos angolanos lisboetas Paulo Flores (letras e participação vocal em “Flutuar”) e Conductor (produtor dos Buraka Som Sistema), entre outros. Até Nelson Freitas deu uma ajuda – não diretamente, mas sugerindo Boddhi Satva, ícone do afro-house, para a produção de uma das músicas. No banco de canções que criou ao lado de outros, a viagem de descoberta também se fez com Dino D’Santiago ou Aline Frazão, mas nem todos os refrões chegaram à lista final.

Há, ainda, o toque de Midas de Kalaf Epalanga, que ao fim de muitos anos de amizade e trocas musicais com Sara, assume não só a co-autoria de “Brincar de Casamento” (um dos singles do disco), mas também as rédeas da pré-produção, ajudando-a a cozinhar esta viragem na sua sonoridade habitual. Em entrevista ao Rimas e Batidas, Sara explicou como partilhou anos de estrada e uma carreira internacional com os Buraka Som Sistema, forjando uma proximidade nessa troca de experiências enquanto embaixadores de Portugal e da lusofonia, embora em trincheiras distintas. Além das vivências, começaram a mostrar maquetes uns aos outros, recolhendo impressões e mantendo-se alinhados.

Como noutros registos, Fitxadu é um álbum do seu tempo, encaixando-se de forma singular na cronologia do movimento da cultura afro-descendente em Portugal – sai um ano depois do fim dos Buraka Som Sistema (2016), no mesmo ano do último de originais dos Orelha Negra (2017), e quase um ano certo antes de Mundu Nôbu de Dino D’Santiago (19 de outubro de 2018). Todos são vértices de um polígono maior de músicos e artistas afro-descendentes que têm reclamado o seu lugar numa Lisboa multiétnica, cultural, territorial, em que estas delimitações tendem a ser difusas. Desde o início, Sara Tavares polvilhou a sua música com sons de Cabo Verde, mas cresceu no Pragal e era, essencialmente, de Lisboa, sendo essa a identidade que assume na mescla de influências que ouvimos em Fitxadu. Contemporânea e conterrânea dos Da Weasel (provavelmente a maior banda nacional da viragem do milénio), Sara também sentia ser do hip-hop e do R&B, e é essa multitude de sons que surge nesta fase final da sua vida e carreira, o regresso à base. Os acordes de guitarra não foram totalmente substituídos por beats, mas o espectro de sons alargou. E ainda bem.

Depois de Fitxadu, voltámos a ter de esperar por mais canções de Sara Tavares. Mas em 2023, no seu canto de cisne, encontramos experiências mais rítmicas que melódicas, uma espécie de evolução das explorações sónicas que encontramos neste disco. A reincidência do tumor cerebral trouxe-lhe afasia e obrigou-a a pousar a guitarra, mas já ela se tinha reinventado. Pegando nas palavras de Gonçalo Frota: “ao levantar os olhos da guitarra e mirar o mundo, descobriu que estava rodeada de possibilidades sem fim.”

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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