Sara Tavares – Xinti (2009)

O imperativo do imediato raramente nos dá a oportunidade de analisarmos um álbum com a perspetiva do que veio depois. Normalmente, ficamos encapsulados no presente, referenciando o passado, mas escrever sobre um álbum à luz de uma discografia que já se sabe finda desvenda visões muito diferentes.

Quando Xinti saiu, a sensação que pairava era a de ser só o princípio do longo caminho que Sara Tavares teria pela frente. Dez anos depois de Mi Ma Bô e quatro após a consagração de Balancê, serviu de reafirmação do talento musical inesgotável de Sara, mas deixava adivinhar tanto por vir. Alinhado com o registo anterior, Xinti foi editado pela World Connection, em 2009, sendo um passo em frente na exploração da sua visão musical e artística: pega em tudo o que resultou, polindo o que podia ser refinado, e atreve-se a molhar o pé um pouco mais fundo, experimentando novas aventuras na sua própria paisagem. Cantora, compositora, letrista, guitarrista, já sabíamos, mas conhecemos-lhe agora a faceta de percussionista.

Apesar da guitarra continuar a ser o instrumento central das composições, a percussão de Sara Tavares e do cabo-verdiano Miroca Paris é basilar na construção de cada canção. Em “Bué (Você É…)“, por exemplo, o ritmo desdobra-se numa espécie de micro-samba com um embalo reggae de contratempo subtil. Esta riqueza percussiva é uma das marcas distintivas da evolução das composições de Sara em Xinti, e revelar-se-á particularmente importante mais tarde, quando a doença a obrigar a reinventar-se. Este é o álbum que antecede o grande travão de Sara, mas na altura não sabíamos isso. Nem nós, nem ela.

A abertura do disco ainda tem gostinho a Balancê. “Quando dás um pouco mais” não destoaria no alinhamento do registo anterior, mas o refrão que puxa à cantoria não tem a mesma energia pop dessa vida passada. Seguimos por “Sumanai”, mantendo-nos numa via gingada que ainda encaixa no mesmo entalhe, mas na obra de Sara Tavares o que fica para trás nunca é revisitado em nostalgia, servindo quase exclusivamente de rampa de lançamento para voos mais entusiasmantes. Quando os acordes de “Ponto de Luz” se ouvem, assim devagarinho, nasce uma Sara nova para o ouvinte – a guitarra, a percussão leve e a flauta de Rão Kyao, tudo doce, num jeito melancólico que tanto lembra o mar do seu arquipélago Atlântico, como nos transporta quase até ao Japão. E a voz de Sara iluminando todo aquele conjunto morno, colo de mãe, luz de farol lá ao fundo, guiando-nos pelos caminhos mais escuros. Na declamação acapella de “Caminhanti”, esses caminhos são os óbvios motivos deste disco. É aqui que reside a universalidade da sua música: ela é sempre, sempre uma jornada espiritual. O caminho faz-se caminhando, mesmo que o destino ainda não seja claro.

Xinti é o álbum mais introspectivo de Sara Tavares ou, pelo menos, o mais calmo – talvez porque a sua autora tenha encontrado um nítido apaziguamento na concretização da sua visão artística e musical nos anos que o antecederam. Ou talvez seja só crescer: o turbilhão sufocante da adolescência e da entrada na vida adulta substituído pela confiança de quem definiu o seu rumo como quis. Na aparente tranquilidade das suas canções, habita uma esperança contínua, alicerçada na evocação permanente do amor nas suas múltiplas formas: romântico, de amizade, familiar, divino.

Durante muitos anos, achei que Balancê era o meu álbum favorito de Sara Tavares. Acompanhou e forjou amizades intensas, tornou-se referência maior daquilo que eu procurava na música que ouvia. Xinti saiu quando eu estava em Erasmus, a descobrir a possibilidade de milhares de vidas paralelas que nem nos meus sonhos imaginava. Não é tão orelhudo quanto o seu antecessor. Talvez por isso não me tenha cativado tão instantaneamente. À medida que os anos passam, contudo, é a ele que regresso com maior frequência. Os sulcos que sarou são incontáveis. “Pé na Strada” acompanhou-me durante o tal Erasmus e uma das relações que mais me marcou, serviu de hino pessoal em tantos dias e noites em que achei não haver mais caminhos por onde andar, ajudou-me a levantar e prosseguir. “Keda Livre”, “Fundi Kumi” e “Exala”: trilogia de algumas das declarações de amor mais lindas que já ouvi.

E depois há “Manso Manso”, uma preciosidade quase instrumental que ameaça fechar o álbum quase sem se escutar a voz de Sara, mas a nossa protagonista prefere um toque mais animado com a entrega da escondida “Mana Fé”.

Quando acordares pensa logo positivo 

Não deixas de dizer bom dia com um sorriso

A razão pela qual retorno com tanta regularidade a Xinti é precisamente esse cruzamento entre o conforto de ter alguém que nos dá a mão em tempos difíceis, levando-os até ao nosso caminho: uma viagem de celebração pelo milagre da vida, pela bênção que é estar vivo, amar e ser amado. Não é cliché, é ser-se humano.

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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