Sara Tavares – Mi Ma Bô (1999)

Mi Ma Bô ainda não é a rutura total com as expectativas dos outros, mas é a bússola que deixa de buscar o norte, para se encontrar no sul. Lançado em 1999, o segundo álbum de Sara Tavares ainda não demonstra a visão artística de Sara na sua plenitude, mas já dá passos firmes na procura de um som mais pessoal. Tem soul e R&B, tem pop e hinos religiosos, tem um título em crioulo cabo-verdiano e refrões em crioulo, português e inglês. Conta já bons apontamentos do que será o seu futuro, num abraço apertado às suas raízes africanas, mas denota uma ligeira indefinição na sua expressão final. Mi Ma Bô, que significa “eu e tu”, é um recorte intimista, mas ainda há momentos de exuberância que, mais tarde, destoarão daquilo que entendo como o legado da sua obra. Esta aventura a solo surge cerca de cinco anos depois da estreia de Tavares na televisão, e três depois da estreia ao lado dos Shout!, dando a impressão de uma Sara mais adulta, mas convém recordar que ela tinha apenas 21 anos quando Mi Ma Bô chegou às lojas.

Apesar de ser óbvio que ainda está a apalpar terreno, a primeira grande afirmação de Sara Tavares enquanto compositora, letrista e co-produtora é auspiciosa e audaz. Se a abertura com “I’ve Got a Song In My Heart” ainda puxa um pouco da rama gospel do registo anterior, cedo se percebe que o caminho é outro. O toque de Lokua Kanza é evidente: a guitarra acústica ganha protagonismo nos arranjos e a percussão torna-se mais rica, fixando a música na ancestralidade de Sara Tavares, que ela própria só começara a explorar e redescobrir a partir do final da adolescência. A longa lista de colaborações de Kanza inclui nomes tão distintos como Diplo ou Vanessa da Mata, mas na altura o músico congolês destacava-se por uma musicalidade mais soul, de instrumentalização a puxar para sonoridades folk e acústicas. Além disso, tinha acabado de trabalhar com algumas figuras particularmente sonantes da música africana, tais como Youssou N’Dour, Papa Wemba ou Miriam Makeba. Será um dos grandes pontos de viragem do disco.

Também as viagens de Sara Tavares a Cabo Verde, que passou a fazer regularmente assim que o estrelato a permitiu, deixaram impacto nas suas composições (“Cabo Verde Na Coração” é a prova mais clara disso). No entanto, não se deixa prender a países ou tradições musicais específicas. Composta por Ivan Lins e escrita por Paulo de Carvalho, “Estrela Mãe” é a materialização de uma certa desterritorialização que Sara acaba por incutir no seu trabalho. Durante a promoção do disco, disse ao Expresso: “Não me comprometo com nenhuma nacionalidade ou cultura, gostaria que fosse um disco do mundo.”, uma postura que definirá o rumo da sua obra.

É no cruzamento destas influências que a Sara Cantora se começa a transformar em Sara Artista, delineando um estilo de fusão próprio, que influenciará dezenas de músicos nas décadas seguintes. Mas ainda falta uma peça fundamental: Ani Fonseca. A ex-guitarrista dos Sitiados trabalhava com Tavares desde 1995, mas passou aqui a assegurar uma figura mais preponderante na sua obra. Sua manager até 2018, segurou papéis de relevo em muitos dos seus álbuns posteriores: a mistura do álbum ao vivo Alive! In Lisboa, a edição de Xinti, a produção executiva de Fitxadu, entre outros. Em Mi Ma Bô assume a co-autoria de várias baladas que se destacam no disco, incluindo as canções que figuram indiscutivelmente no cânone da obra de Sara Tavares.

Já na recta final do disco, “Wanoaiami” é mais subtil que as músicas que lhe sucedem, deixando que a voz de Sara nos envolva – emocional, mas delicada, sem assoberbar quem a ouve (a explosão de decibéis exigida às grandes divas dos anos 1990, surge logo a seguir, em “Voá Borboleta”, uma composição em que tanto Fonseca como Tavares ficam de fora). Imediatamente antes, “No Teu Tempo (In Your Time)” é a menos interessante deste conjunto. “É Mim” é entregue a capella só com o som do mar a embalar a canção, muito ao fundo, numa gravação tão pura que até a falha natural da interpretação tem espaço. Aos 45 segundos, há uma ligeira quebra na voz, mas o que poderia ser uma imperfeição acaba por tornar este quase-interlúdio num dos pontos altos do disco. Recuando no alinhamento, “Nha Cretcheu (Meu Amor)” é uma balada ancorada no neo-soul, polvilhada com notas de Fender Rhodes que aquecem o romance e derretem corações, mesclando o português e o crioulo com a doçura que só ela consegue. É, provavelmente, a melhor incursão de Sara Tavares numa vida pop bem mais perto de Erykah Badu do que de Whitney Houston. Todas estas canções estão na segunda metade do disco, mas é logo no início que estão os 3:42 que, mais de vinte anos depois do seu lançamento, têm um lugar na lista das músicas mais ouvidas de Sara Tavares no Spotify. Inspirada no Salmo 139, “Eu Sei” é a maior demonstração da cristandade na discografia de Sara Tavares. Apesar do instrumental evocar o imaginário Disney da altura, a devoção da interpretação torna-a intemporal. Dois anos depois do lançamento, a música entrou na banda sonora da telenovela brasileira A Padroeira. E mesmo em 2023, ainda há quem entregue os seus votos de amor eterno ao som desta canção.

O primeiro disco em que Sara Tavares se afirma como talento musical completo, é também o último em que escolhe cantar canções inteiras em inglês. Sem nunca serem totalmente desinteressantes, em boa parte graças à voz e interpretação da nossa protagonista, “I’ve got a song in my heart”, “Breathe” e “Soul Magic” são os elos fracos de um álbum que, não sendo brilhante, tem muitos momentos assinaláveis. E ainda bem, porque é na interseção do crioulo e do português que o seu talento se vai revelar inesgotável.

O refrão mais orelhudo do disco, o homónimo “Mi Ma Bô”, ainda não tem o requinte que vamos encontrar quase meia dúzia de anos mais tarde, em Balancê, mas levanta já o véu do que vamos encontrar nesse álbum seguinte – uma coleção de canções que dão vontade de dançar, a mais consistente da sua carreira até então. Mas sobre esse disco, escreveremos na próxima Playback.

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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