Sara Tavares – Balancê (2005)

Comecemos pelo imediato: não vão encontrar Balancê no Spotify. A melhor hipótese de encontrar o disco nestes dias digitais é o YouTube, desorganizado por listas de reprodução mantidas por devotos do trabalho de Sara Tavares. Editado em 2005, pela neerlandesa World Connection, Balancê é a primeira grande concretização da visão artística de Sara Tavares, que além de escrever e compor praticamente todas as canções, assume as rédeas dos arranjos e da produção. Aliás, para lá do nome da nossa protagonista, os créditos do disco são curtos, listando quase só funções técnicas, mas merece apontamento o nome de Jorge Barata na gravação, nome histórico dos fonogramas nacionais, cuja longa experiência terá tido o seu peso no som final. Com uma carreira que remonta à década de 1970, Barata está ligado a uma espécie de tradição acústica da música nacional (e não só! Também gravou outros, como os Xutos ou Peste e Sida), aparecendo na ficha técnica de trabalhos de artistas como José Afonso, Madredeus, Vitorino, Mariza, mas também da voz maior de Cabo Verde, Cesária Évora.

O início de Balancê (título do álbum e também da canção inaugural) é altamente reconhecível. A marca do tempo na percussão, os acordes de guitarra clássica e a doce voz de Sara Tavares entram por esta ordem, embrulhando-se uns nos outros, num morno crescendo que abraça um ritmo leve, mas ligeiramente requebrado. Elegante na sua aparente simplicidade, esta introdução é tão emblemática que foi samplada, anos mais tarde, por J.Cole e Angel Haze, e revisitada em versões de Luiza Possi e Mariene de Castro. Poucos compassos depois, o convite torna-se mais claro:

Como vi dançar no Zimbabué
Quero também contigo gingar, uê
Uma dança nova, mistura de semba com samba
De mambo com rumba, tua mão na minha e a minha na tua

De novo a mistura como a casa de Sara Tavares, aqui pela primeira vez a assumir uma vida mais ligeira, em celebração e liberdade (como explicita no segundo verso). E que festa esta a que Balancê nos dá. Logo a seguir entra “Bom Feeling”, uma das canções mais bem dispostas da década, quase só ombreada por “Boas Vibrações” de Melo D, lançada dois anos antes. Não esqueçamos este nome.

Seguimos por “Lisboa Kuya”, num pôr-de-sol tornado refrão, banda sonora perfeita de qualquer fim de tarde brilhante, expectante e acolhedor. Ouvem-se pássaros ao fundo e o jeito gracioso da guitarra de Sara embala o imaginário de uma cidade em flor. “Lisboa Kuya” é a “Lisboa que Amanhece” do seu tempo, encapsulando o optimismo da cidade em quatro minutos e meio. A homenagem de Tavares à capital ecoa por muitos momentos da música nacional posterior, da melancolia da ponte de “Saudade” cantada por Kalaf na colaboração com os Macacos do Chinês (em Ruídos Reais, 2009) à ginga suave da “Nova Lisboa” de Dino D’Santiago (em Mundu Nôbu, 2018, e em que Kalaf também dá o seu toque).

A primeira balada, “Ess Amor”, serve de apresentação da intimidade que encontraremos ao longo de quase todo o disco.Dam Bô” (a única composição assinada por outros, neste caso Hernâni Almeida), “Guisa” ou “Muna Xeia” alinham-se como uma série de músicas mais lentas, em que Sara Tavares refina essa sua mistura-assinatura de música cabo-verdiana com a expressão europeia, sem nunca mergulhar totalmente na herança da morna.

Balancê é a concretização do ponto de viragem deixado em aberto em Mi Ma Bô, e o início da realização total da visão artística de Sara Tavares

Ao terceiro álbum (ou segundo a solo, vá), a voz de Sara Tavares garante uma companhia à altura: os arranjos centrados na guitarra clássica, com percussões ricas mas não ofuscantes, reduzindo a música quase ao seu essencial: ritmo, melodia e harmonia. Nas colaborações – com Melo D, o histórico da música cabo-verdiana Boy Gé Mendes, e Ana Moura -, a magia do canto em evidência, sobretudo no dueto com Moura. Quase acapella, apenas com uma percussão quase metronómica a acompanhar, “De Nua” encerra o disco com um momento de beleza implacável, que nos atira ao chão apenas com a força da emoção das vozes de cada uma delas. Ainda hoje recordo esta canção, ao vivo no Cinema São Jorge, como um dos melhores momentos musicais a que tive o privilégio de assistir.

Balancê é a concretização do ponto de viragem deixado em aberto em Mi Ma Bô, e o início da realização total da visão artística de Sara Tavares. Não há pontos fracos, todas as músicas merecem a nossa atenção por inteiro e o deleite de audições prolongadas e repetidas. Cada nota e instrumento têm sentido próprio, obrigando ao confronto com as nossas próprias emoções – a música como canal de encontro connosco através do outro.

Comercialmente, Balancê foi o maior sucesso de Sara Tavares. Foi disco de platina e valeu-lhe uma nomeação para os World Music Awards, da BBC Radio 3, na categoria Artista Revelação. Levou-a em digressões internacionais e a um dos programas televisivos mais conhecidos do mundo, o de Jools Holland na BBC. Mas o empurrão dado por um selo neerlandês colocou-a nessa redoma a que a etiqueta “música do mundo” votava os artistas ligados a musicalidade fora dos eixos europeu/americano, uma lembrança insistente do pós-colonialismo. Sara tinha uma visão bastante crítica deste circuito. Não se deixando levar pelas implicações destes rótulos, a partir de Balancê trilhou o seu caminho, destemida e despreocupada com a influência mediática. A sua verdade na arte que criava tornou-se o único foco.

Numa altura em que muito se debatem questões de mescla de ritmos e influências da diáspora afro-descendente em Portugal, importa sublinhar o valor pioneiro de Balancê. Mantendo a tradição a que nos habituara, Sara Tavares continua a misturar português, língua cabo-verdiana e inglês, mas é aqui que assume a fluência neste idioma próprio – tanto verbal como musicalmente. Ainda que não destoe da malha do que se produziu nessa década – de Melo D a Lura, passando pelo sucesso de uma Mayra Andrade ainda fincada na francofonia – o álbum coloca Sara Tavares na liderança de um movimento de artistas que encontra a sua voz no cruzamento da sua africanidade com o mundo europeu em que nasceram e/ou cresceram. Quase vinte anos mais tarde, encontramos a influência do álbum em trabalhos tão distintos quanto Afro Fado de Slow J, ou DECLIVE de EU.CLIDES, provando a singularidade do trabalho de Tavares no futuro da música portuguesa.

O primeiro artigo que escreveu sobre música eletrónica foi para o jornal da escola. Continuou a escrever, passou por uma grande promotora, mas foi na rádio que alimentou a maior paixão. A sua voz atravessou a antena de quase uma dezena de estações, mas teve residência permanente na Oxigénio durante cerca de cinco anos. Mais tarde, fundou o Interruptor. Atualmente é uma das responsáveis pela campanha Wiki Loves Música Portuguesa.
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