Da mente de Vanessa Borges brotou Hadessa (estilizado como HADESSA), alter ego com que se apresenta a solo e com o qual editou este ano Fortuna (estilizado como FORTUNA), longa-duração de estreia onde a artista, a partir da sua história de emancipação, constrói narrativas combativas que desaguam em música pop embutida por canção de intervenção, trip hop e melodias tradicionais.

Se o cocktail por detrás de Fortuna parece tentador, é provavelmente porque o é. É um dos discos de estreia mais interessantes de 2023 na música portuguesa e será apresentado este sábado (16), no Tokyo, em Lisboa, onde Hadessa vai ser acompanhada em palco por um conjunto de “afortunados”, entre os quais se incluem Momma T (a produtora do disco), Catarina Branco ou Tiago Vilhena.

Capa Fortuna
Capa Fortuna

Antes desse show, a Playback foi beber um copo com Vanessa ao Cais do Sodré para falar sobre o seu percurso até Fortuna (o disco e não só), a sua apresentação ao vivo, ativismo pela cultura, e o que se segue para a artista nascida em Torres Novas.

Ia começar esta entrevista com uma pergunta, mas, entretanto, li uma coisa no Twitter e alterei. Que história é essa do Idris Elba?

[Risos] Não vás por aí!! Foi shitposting [risos]! Passa à frente, vamos fingir que esta pergunta não aconteceu [risos]. Mas as pessoas acreditaram! 

Era weirdly specific, parecia-me plausível de ter acontecido…

Sim, exato! E além disso, nunca faço isso, estás a ver? Tenho 36 anos, ou seja, cresci com a Internet em que se dizia tudo a toda a hora. nunca fui muito assim bully, mas se não gostasse de alguém dizia, estás a ver? Mas ao crescer mais um bocadinho, comecei a pensar que há coisas que envelhecem mesmo muito mal, por isso, vamos ter cuidado com o que digo. Não que alguma vez tenha dito alguma coisa de mal – acho eu – mas agora abstenho-me de gozar com cenas que antes gostava bué de gozar. Então, quando gozo, são coisas assim inofensivas. E porque não? Gostava bué de ter partilhado com ele um prato de amêijoas.

Bem, esclarecido isto…  Antes de seres esta Hadessa, venceste o Quem Quer Ser Milionário e o Joker. Como é que isso aconteceu?

A pergunta de milhões [risos]! É complicado de explicar tendo em conta que as minhas maiores inseguranças se prendem com inseguranças intelectuais. Aquela síndrome de impostor horrível, estás a ver? No primeiro [Quem Quer Ser Milionário], tinha 23 anos, foi a minha mãe que me inscreveu, recebi uma chamada, fui, e aquilo foi curiosamente fácil. Por qualquer razão, sabia as coisas. Sei lá, por exemplo, sabia a capital de não sei onde porque tinha uma pen pal desse sítio. Coisas assim desse género. Entretanto, passados dez anos, estava em casa, vi a cena do Joker e pensei “Olha, e se eu fosse?” E fui. Eu ia morrendo! A minha sorte foi que eu fui ao casting, fui logo indicada para ir gravar, e aquilo passou logo [na televisão] poucos dias depois, porque senão tinham sido dois meses de ansiedade profunda. As perguntas foram super difíceis na segunda vez, não eram do meu domínio. Teve mais sorte envolvida. Também levei a minha mãe que me ajudou. Mas ya, foi uma cena fixe que aconteceu e que me ajudou a fazer o disco.

Com o dinheiro?

Exato. Caso contrário, não teria sido possível.

Já que falaste no disco [risos], ao longo do tempo estiveste envolvida em vários projetos, incluindo o duo Chão da Feira, com a Alina Sousa, que editou um EP em 2015 [Das Tripas Coração]. Como passaste dessa Vanessa para a Vanessa que criou esta Hadessa?

Pergunta bué interessante. Eu sempre senti aquela cena de não ser boa o suficiente para nada, mas sentia um bocadinho menos isso quando colaborava com outras pessoas, fosse nas bandas de vila ou de aldeia em que estive ou nos coros das escolas de música que às vezes fazia. Também me lembro de para aí em 2006 ou 2007 ter um pequeno projeto com músicos de Ourém – sou de Torres Novas –, e fazíamos tipo uns concertos de homenagem ao Zeca Afonso. E eu sempre tive na cabeça que a cena tinha de ser colaborativa e era super egoísta ter uma coisa em meu nome. Pronto. E eu acho que a Hadessa surge de um processo individual e pessoal meu em que passo de um contexto de maternidade, de me dedicar bué a outros, para um de me redescobrir fora disso. De voltar a descobrir outras coisas, de perceber o que é que curtia, tanto de música como exercício físico ou o que gostava de fazer. Foi esse processo de descobrir a minha individualidade que me deu coragem de avançar com Hadessa porque, mesmo não sendo em nome próprio, porque não é a Vanessa Pinheiro Borges per se, é um alter ego onde gosto de colocar uma certa magia, um certo fantástico, porque a vida do dia-a-dia e da rotina tem pouco disso. Acho que durante muito tempo, e sobretudo porque tive uma educação super religiosa, super restrita, tive que me libertar dessa magia, que não me servia, fazia o caminho para o cinismo, e agora voltei a descobrir essa fantasia nos meus próprios termos.

Acho que acabaste por responder à minha próxima pergunta [risos]. A Hadessa é uma personagem criada por ti, mas, ao mesmo tempo, claramente és tu. Onde está a linha entre ambas? Parece ser ténue…

Acho que é só uma questão prática. A Hadessa usa unhas compridas e eu no meu dia-a-dia não posso [risos], porque toco guitarra. Já agora, uma cena interessante, que não sei como vou fazer. Eu quero unhas compridas para o concerto, mas também quero tocar guitarra. Então, não sei como vou fazer [risos]. Mas sim, a Hadessa sou eu. A Hadessa é muito a pessoa que, quando eu me olhava ao espelho quando era miúda, imaginava, projetava. É a Vanessa que eu queria um dia ser no futuro, talvez, e isto tem muito a ver com o meu processo de crescimento. Quando era miúda, eu já queria contrariar aquela coisa de, quando és mulher, chegas a uma certa idade e está toda a gente “Acabou, morreste, não és nada”. Eu ainda hoje ouço isso da minha mãe e de bué pessoas à minha volta, estás a ver? Eu ficava chocada quando a minha avó, que tinha 56 anos, me dizia que já estava demasiado velha para aprender inglês. Ela hoje tem 87 anos e teve 30 anos para aprender inglês. Podia ter perfeitamente aprendido, estás a ver? Então, ya, isto é bué o que quero fazer nesta altura da vida. Não que eu seja uma pessoa que tenho all figured out, porque não tenho. Mas quando me apaixono por uma cena, quero levar tudo para a frente. Isso aconteceu com a cena de ter filhos, por exemplo, e agora com a cena da música. Claro que eu tive várias tentativas de estar mais presente na música, nomeadamente com a edição do EP de Chão da Feira em 2015, mas… acho que não era o momento, entendes? Era o momento para nos lançarmos e foi um bom momento, mas não era o momento para começar e despoletar um contínuo. Até porque eu cada vez mais acredito, com aquilo que vemos em Portugal, se calhar não tanto lá fora, mas as carreiras não são feitas necessariamente sempre de crescendos, não é? Há altos e baixos e é nesse tipo de gráficos que eu agora me sinto confortável. Sei que a Hadessa se calhar pode ficar um bocadinho escondida agora passado algum tempo do disco, mas aquilo que eu quero com Hadessa, e me dá um bocadinho de coragem até, que se calhar a Vanessa não tem, é chegar à fala com as pessoas que ouvem a minha música. Atualmente, é mesmo isso o meu objetivo primordial. Mais do que ter não sei quantos seguidores ou ter não sei quantas pessoas aleatórias que te vêem num festival e depois nunca mais, é ter aquelas 100 pessoas que estão lá, que vão ouvir o teu disco do princípio ao fim várias vezes e que estão no teu concerto a cantar as tuas músicas. É isso que quero construir. Não lhe vou chamar comunidade, mas ter esse tipo de ambiente à minha volta. É o que pretendo.

Falaste há pouco de religião. Acho que o Fortuna é um disco com uma noção muito espiritual por trás. Como é que esse teu lado se imiscui na tua música?

Acho que esse lado entra de uma forma muito contraditória e conflituosa, e isso é fixe. Lá está, durante o processo de crescimento, vamos deixando cair algumas crenças, não é? E às vezes, mais tarde, podemos recuperá-las para nos servirem. É um bocado isso que gosto de fazer. Gosto de pensar que toda a questão religiosa que durante tantos anos significou opressão para mim enquanto mulher, enquanto pessoa, tem um lado que às vezes pode trazer conforto. Por exemplo, a música que é feita com vista ao divino normalmente é uma música que eleva muito o espírito. É mesmo música feita para elevar aí a conexão com o que quer que seja que esteja lá em cima ou noutro lado qualquer. E no meu caso, foi descobrir, sobretudo na natureza, um lugar onde estamos à vontade, onde podemos explorar a nossa fantasia.

Quando é que começaste a conceptualizar o Fortuna? Eu sei que pelo menos uma das músicas tem 15 anos, mas o disco em si é mais recente.

Eu fiz um curso de processo criativo e método de trabalho com a Capicua, em outubro de 2021, com a ajuda de alguns dinheiros ainda disponíveis de quando ganhei o Joker. Na altura, ainda não sabia bem o que queria fazer, porque já tinha várias vezes pensado em fazer qualquer coisa para mim, em que eu “controlasse” o processo todo. E quando estávamos a falar sobre fazer um projeto, veio-me à cabeça esta ideia de fortuna, fortuna no sentido de abundância, que a gente relaciona com bué dinheiro, mas como também pode ser ligado à sorte, à aleatoriedade das coisas. Eu não sou nada #blessed nem nada disso, porque também acontecem coisas más, mas quando olho para a minha vida, ela sempre foi marcada assim por pequenos momentos de lucky strike. Então, pensei em fazer uma coisa em torno disso, e escrevi o conceito, sobretudo ligado muito à ideia de destino, que é um tema bué subjacente no nosso fado. Eu queria ir um bocadinho pelo caminho do fado porque eu nunca cantei fado sem ser agora. Apesar de ser a música com a qual cresci, diziam-me sempre que tinha de se nascer fadista. Só agora é que me consegui libertar disso para experimentar e ver o que saía e foi uma cena assim meio transgressiva, de fazer e estar-me a cagar se caiam em cima de mim a dizer se era ou não fado. E depois de ter o conceito, procurei entre as várias músicas que tinha escrito ao longo dos anos e que nunca foram aproveitadas, ou porque não se enquadravam na estética ou na cena de Chão da Freira. Por exemplo, a segunda parte da “Temperança”, mais rock, foi a primeira coisa que escrevi na vida, quando tinha 15 anos. Portanto, já foi há 21 anos. 

Explica porque é que soa a pop rock dos anos 90 [risos].

Exato [risos]. Antes de escrever música, gostava de escrever letras para músicas que já existiam, que eram o que os Onda Choc faziam, e essa música foi a primeira em que agarrei na guitarra e escrevi. Não escrevi com esta letra, esta letra é nova, mas era uma música, como eram todas as minhas músicas ao longo da adolescência e da idade adulta – e ainda agora –, marcada por morte, sangue, coisas assim bué gore

Apocalíptica.

Sim, sim. Não que me identificasse muito – a cena que eu curtia mais nessa onda era punk rock, mas mesmo assim… E no fundo, acho que não fugia do fado, estás a ver? O fado às vezes é bué macabro e esquisito e é bué profundo e visceral. Portanto, essa música foi escrita há 21 anos, em 2002, e foi reaproveitada. E a primeira parte da “Temperança” foi uma música que escrevi durante a pandemia para musicar um livro de crianças – eu dou aulas a crianças – e fazer um vídeo. Então, durante a criação do Fortuna, fui buscar esses pedacinhos e escrevi letras novas. A “Fortuna”, por exemplo, a melodia também já tem algum tempo, e aquilo pareceu-me muito bom para introdução. Mas também escrevi uma letra nova. Depois, temos a “Bom o Suficiente”, que era mais antiga, a “Dedos da Mão” também. A “Força Motriz” e a “Mãe [(elegia)]” já são mais recentes, mas não foram construídas de propósito para o Fortuna. Portanto, quanto mais antigo, mais as letras são recentes, e as coisas mais recentes têm cinco, seis, sete anos, no máximo. O certo é que às vezes não queria estar-me a reduzir muito ao conceito propriamente, mas também não queria que ele extravasasse. Tinha medo de que ao ter tudo pensado o tornasse redutor, mas eu consegui encontrar familiaridade entre as músicas. Na “Bom o Suficiente”, consigo pensar que se relaciona com fortuna porque é quando se a gente se contenta com o que tem, com a sorte que tem, e não procura sair disso. A “Dedos da Mão” também vai muito nessa onda, mas depois aponta para uma solução mais revolucionária. A “Mãe” também é uma visão assim super de fora, muito descritiva, que acho que até tem mais poder que outras músicas que são mais proativas, mas é uma música onde tenho recebido bué mensagens de pessoas que se revêem no texto. E pronto, escrevi letras para coisas novas, reaproveitei coisas antigas, e juntei tudo no mesmo bolo que tentei que tivesse assim uma espécie de estrutura circular, da fortuna à ruína, com esperança no fim.

Tu ao longo do Fortuna exploras várias sonoridades como o fado, o trip hop, ou melodias da canção tradicional portuguesa, mas a “Dedos da Mão” soa algo “fora” – soa mais punk. Como surgiu essa faixa?

Foi um bocadinho uma estrutura circular de inspiração. Os acordes da “Dedos da Mão” são os acordes da minha música favorita dos Strokes, a “Heart In a Cage”. Quando estive em Paris, na escola de música, nós fizemos uma jam em que cantamos a “Heart In a Cage” com uma vibe quase bluegrass, e quando eu fiz a “Dedos da Mão”, com esses três acordes, eu cantei-a assim várias ocasiões, em contextos mais de música de intervenção. Mas achei que queria descolar-me ao máximo da cena de cantautora acústica que tinham Chão da Feira e de quando me apresentava sozinha, assim em coisas muito pequeninas, e comecei a pensar onde isso me podia levar. E a referência que dei para essa música à minha produtora foi justamente a “Heart In a Cage” e uma série de outras coisas de punk rock que curtia, desde Tara Perdida a Censurados ou Offspring, que curto bué. Então, aquilo ficou assim com um som bué 2005, não sei explicar [risos]. Eu não percebo grande coisa de produção – percebo do que ouço, claro – e então não estou ali a fazer micromanagement do processo. No fundo, a pergunta que faço sempre é se a música está a servir a mensagem que quero passar com o texto. E opá, pensei que aquilo não ficasse assim off no disco. Achei que era só inesperado e que era uma boa forma de homenagear uma certa cultura em que cresci. De 2006 a 2009, eu frequentava concertos punk todas as semanas num bar em Torres Novas, que era o Rivas, que recebia bandas de todo o lado e eu apaixonava-me pelos baixistas normalmente [risos]. Não sei se vou ter vontade de fazer estas cenas no futuro, mas estou orgulhosa de ter feito esta desta maneira. Acho que é fixe. Porque o rock também existe em mim.

Falaste aí em Paris. Que experiência foi essa?

Quando ganhei o Quem Quer Ser Milionário, gastei o dinheiro todo em ir para uma escola de música em Paris. Porquê em Paris? Porque é a minha cidade. Não sei explicar. Eu não queria morrer sem ter vivido lá, ter aquela experiência de viver lá. E tive! Fui para Paris, fui para uma escola de música estudar canto, e opá, era um ambiente incrível. Eu passava de manhã à noite na escola, e quando a escola fechava, íamos para o bar dentro da escola, e estávamos sempre em ambiente de música, constantemente, a toda a hora. Estive lá um ano e ainda pensei em ficar lá no ano seguinte, mas depois apaixonei-me cá [em Portugal] e fiquei. Mas ya, foi bué louco porque foi mesmo aquela experiência boémia! Fazíamos festas em casa uns dos outros, ficávamos a tocar e a cantar até altas horas. Há uma banda bué fixe francesa, que são os Psychotic Monks, e eu estava lá quando eles se juntaram, dois deles eram dois colegas meus super próximos. Paris foi mesmo bué fixe. Não posso falar disto porque fico com bué saudades e com vontade de voltar para lá.

HADESSA por Joanna Correia
Fotografia: Joanna Correia
Algo que também une as canções de Fortuna é lado combativo que existe nelas. Neste momento, a música e a cultura vivem (mais) um momento complicado, onde locais como o Stop, o M.Ou.Co, ou a Casa Independente, independentemente do seu papel na gentrificação do Intendente, vão fechar portas ou estão em vias de as fechar. Como alguém que tem o ativismo como carta de visita, como vês todo este momento, que surge em contraste com um momento de efervescência na música portuguesa?

É assim, essa efervescência que temos tido nos últimos anos, acho que é um bocado cíclica. Sinto um bocado isso. Sobretudo nesta coisa da portugalidade e na redefinição da portugalidade. Sinto que, de tempos a tempos, ocorre esse fenómeno–

Sim, por exemplo, tu falas d’A Naifa como inspiração, e os projetos do João Aguardela, há 20 anos, estavam a fazer essa redefinição.

Ya, sem dúvida. Mas A Naifa tinha ali uma particularidade. Era algo muito mais lírico, embora não se tivesse desligado das coisas mais interventivas, até porque eles próprios se posicionam nesse espectro. A Mitó [Maria Antónia Mendes] canta comigo a “Força Motriz” no disco e o Luís Varatojo foi meu professor aqui em Lisboa e, no início do Fortuna, falei com ele a pedir conselhos e ele foi super prestável. Ou seja, quando estava a pensar no Fortuna, e isto foi uma coisa que falei com a Capicua na altura, tinha uma dúvida que me consumia, ligeiramente ligada a não me achar boa o suficiente. Eu queria dizer coisas em que algumas são mais interventivas, e falo sobre problemas sociais ou problemas que sinto, e outras que não são. Outras só são bué random e quero escrever sobre passarinhos, árvores, flores, amor. E como crio a minha identidade querendo fazer estas duas coisas? Sobretudo, e isto é importante referir, eu sou militante há 18 anos do PCP [Partido Comunista Português], e eu queria ser cantora de intervenção e posicionar-me, mas não queria ser só isso. E foi um bocado a Hadessa que me ajudou a descolar dessa imagem e de dizer que, sim, posso fazer música de intervenção e curtir de, por exemplo, moda, porque isso também é uma forma de arte, e de às vezes mostrar alguma opulência. Nós não temos de nos subjugar a uma estética musical ou pessoal de humilde, estás a ver? Acho que às vezes falta, e eu não sou a primeira pessoa a sentir isso, que não sou boa o suficiente, mas sinto bué, com algumas exceções na pop portuguesa, que somos bué tímidos ou tímidas, que não queremos passar aquela ideia de que somos demasiado fúteis–

Precisamos de mais Bárbaras Bandeiras!

Sim, eu também acho que sim. Mas não é bem Bárbaras Bandeiras, porque cada cantora é única. Mas precisamos de criar espaço para fenómenos em Portugal. Quando falamos, lá está, da Bárbara Bandeira, ela é uma cantora que tem uma estética muito própria, com um conjunto de músicas produzidas de determinada maneira, de acordo com certos padrões, mas também estamos a falar de alguém em quem a indústria portuguesa investiu. Parece-me que as estruturas que controlam esses vários momentos de aparecimento de cantores novos têm muito medo e precisam de testar um artista até ao fim a ver se dá, a ver se sobrevive, e só depois, sim, pegam nele. Se calhar, precisamos que exista um investimento mais cedo para conseguirmos atingir o nosso potencial mais cedo e não ficarmos todos fodidos e rebentados passados dez anos de andar na luta. Claro que podemos falar aqui da monocultura da música, e não sei se estou a ir de encontro à tua pergunta, mas é um tema que me aflige um bocadinho. Por isso é que relativizo muito aquilo que é o meu “sucesso” ou o hype que há à minha volta ou não. Nós temos artistas que o ano passado eram super reconhecidos e que estavam por todo o lado e que agora já não estão. Temos artistas que há dez anos estavam em altas e eram tipo a maior cena do mundo e agora já não estão. E não foi por esses artistas terem deixado de trabalhar ou de terem deixado de criar coisas boas ou não, foi simplesmente a lógica de mercado faz com que seja necessária uma espécie de renovação. E é claramente uma lógica capitalista, estás a ver? E não é que eu não queira entrar nessa cena, mas eu tenho de o fazer sabendo perfeitamente que não é aqui que vai residir o meu valor enquanto artista. Não o é no número de seguidores nem no número de coliseus que se enche. É na obra. O que importa é a obra, o impacto que a gente tem num dado momento para aquelas pessoas, entendes? Se eu todos os anos fizer um concerto em que aparecem 30 pessoas que sabem a minha música de cor, é bom. Não me paga as contas, vou ter de continuar a trabalhar, mas artisticamente sinto que não faz de mim uma artista menor, porque enquanto artistas, acho mesmo que para a gente sobreviver, a gente tem de sair dessa lógica do valor está no que me dão e não no nosso valor intrínseco. Face àquilo que acontece na música, acho que é só fruto do capitalismo, nomeadamente no caso do Stop, em que estamos a falar de um centro comercial em que as bandas pagam aluguer, como se calhar outros lojistas pagariam. Mas se houvesse um real investimento na cultura, tínhamos salas de ensaios. E nós poderíamos ter! Lá está, no Intendente, aquelas casas e hotéis vazios, podiam ser reabilitados e dar espaços a sítios onde se pudesse fazer música. Se a gente for para outras áreas da cultura, como o cinema, onde os custos ainda são maiores, nem se fala. Mas de facto, a cena que se passa no Intendente, é que foi gentrificado naquela altura, e agora está a ser gentrificado outra vez. Eu toquei duas vezes na Casa Independente e os concertos aconteceram muito por parte da vontade dos programadores, que eram uns putos malucos que queriam fazer concertos. Era muito à pala disso que nós [Chão da Feira] tocávamos. E até que ponto esses espaços queriam mesmo potenciar a cultura, não é?

Estiveste por trás do projeto Modo Menor, um projeto de educação musical dirigido a crianças pequenas. Que importância vês no estímulo criativo para crianças?

É bué importante. Eu dou aulas de música n’A Voz do Operário a crianças, desde bebés até aos seis anos, e em mais três escolas. E n’A Voz Do Operário, aquilo que fazemos não são aulas de música de maneira formal. São momentos em que trabalhamos música, de várias formas. Temos crianças de contextos muito variados, onde a grande maioria vêm de famílias de emigrantes ou que estão no processo de emigrar para outros sítios da Europa, e aquilo que acho importante é, mais do que criarmos futuros virtuosos ou ensinar um instrumento ou a cantar, é a noção que através da música, quer ela tenha palavra ou não, há uma componente de expressão, há uma componente de emoção, e há uma possibilidade de nos valorizarmos enquanto indivíduos e enquanto grupo. Eu vejo crianças que podiam ser músicos incríveis, mas sei que a educação formal musical é tremendamente elitista. É preciso ter muito dinheiro para pagar e depois também é muito limitadora, no sentido em que só se aprende de uma maneira. E eu sei isso porque também andei no conservatório e não conseguia aprender dessa maneira. Eu aprendi depois piano a tocar as músicas que escrevia através da minha própria criatividade. E esse é outro foco bué grande que dou nas minhas aulas de música, em permitir que se criem músicas sobre as nossas experiências. Por exemplo, estou a lembrar-me de uma situação em que reunimos as famílias e escrevemos uma música sobre as mensagens que os pais queriam passar aos filhos em quatro línguas diferentes – português, changana, que é uma língua de Moçambique, e em duas línguas crioulas de Cabo Verde – e foi bué bonito. Há muito espaço para eles ouvirem as músicas que gostam, dançarem as músicas que gostam, nós ouvimos tudo. Todos os tipos de música. Tento muito equilibrar a música que eles gostam e que dizem que querem ouvir, venha ela dos TikToks ou de casa, e surgem cenas super diferentes por causa da diversidade cultural que há ali. É um bocado fazer o trabalho de, através da música, passar a mensagem de que te podes expressar e fazer a tua arte. Eu acredito, e isto é bué clichê, que toda a gente consegue fazer música e consegue ser artista. É preciso dar as condições para que isso aconteça. Eu sou artista porque tive essas condições; a minha mãe, por exemplo, queria ser artista, mas ficou-se pelo querer porque as condições dela não lhe permitiam ser e ela procurou que eu o pudesse ser. É bué importante trabalhar com as crianças, sobretudo na diversidade musical, no conhecimento de novas culturas, dar-lhes uma grande variedade de musicalidades que possam explorar, para que não sejam só miúdos que curtem só de coisas com quatro acordes e para que sobretudo se sintam livres para explorar coisas diferentes. Saber que é tudo bué válido e é bué bonito nós usufruirmos e criarmos música em igual medida. E isto está na nossa constituição, mas não é um direito executado. É consagrado, mas não é executado. E eu, miúdo a miúdo, tento fazer um bocadinho esse trabalho, de lhes dizer que a cultura não é um privilégio, que é um direito.

Já falamos nesta entrevista d’A Naifa. Como é que a Mitó acabou a colaborar contigo neste disco?

Através de uma amiga em comum. A minha história com A Naifa é muito coming of age, achava espetacular tudo aquilo e fizeram-me ver o fado de outra maneira. E eu era super apaixonada por ela, até lhe escrevi um soneto em 2007 [risos]. Ela acabou por se tornar amiga de uma amiga, eu pedi o contacto e fui na fé. Ela não tem cantado muito, faz assim uma participação ou outra na medida da disponibilidade dela. Eu achava que ela ia ser super inacessível – eu antes da Mitó abordei duas cantoras, mas na realidade elas acabaram por se revelar bué inacessíveis – mas não! Falei com ela diretamente e de uma forma bué eficaz ela marcou presença. Marquei com ela uma manhã no estúdio para gravar o refrão e foi um pouco como a “Dedos da Mão”, de ter aquele conforto daquela música de uma fase da tua vida estar ali no disco. Foi muito bonito. Gostei imenso de trabalhar com ela.

A Momma T foi a produtora deste disco e parece ter sido essencial para chegares à sonoridade que almejavas para cada canção. Como a conheceste e como foi desenvolver o trabalho deste disco ao lado dela?

Estava à procura de produtores para o disco e um dia calhou na net, no Instagram – passo demasiado tempo lá [risos] – ver qualquer coisa a falar sobre ela. Fui ver o perfil e ela tinha uma música bué groovy sobre uma receita de massa com molho de tomate e fiquei logo com a ideia que queria alguém assim para trabalhar no disco. Falei com ela, apresentei o projeto, que era algo grande, mas ela não se deixou intimidar. Foi uma colaboração bué respeitadora, bué fixe, mas que eu também… era aquilo que falávamos antes. Não tenho a mania que não sei, mas gosto bué do pessoal que contribui não se sinta mega preso. Tento sempre dar espaço à criação pessoal, mas claro que ela precisava de guidelines

Quadros, né?

Sim. Ya. Ambientes. Por exemplo, a “Fortuna”, eu expliquei que queria uma igreja no Mississippi, mas não era bem no Mississippi, era uma igreja na Baixa da Banheira, uma que há lá num descampado. Uma referência que lhe dei, e que é uma presença constante no disco, e que não queria nada que fosse rip-off, é o Multitude do Stromae, que para mim foi o álbum de 2022 e é um dos álbuns da minha vida. Para a “Fortuna”, dei-lhe a referência específica da “L’enfer”, por exemplo. Na “Ruína”, lembro-me de lhe dar a “Santé” como referência, mas também a “Etelvina” do Tiago Vilhena, que dava sempre na Radar todos os dias quando eu ia para o trabalho. E agora Tiago vem tocar agora comigo no concerto! Bué louco. Mas foram raras as vezes em que tive de lhe dizer que não era por aí ou que existissem muitas dúvidas em termos de sonoridades. Não tentei que o disco fosse coeso através da sonoridade, porque achei que a lírica e o conceito já o faziam. Queria que fosse diverso, que causasse sentimentos contraditórios nas pessoas que o ouvem. E a Momma T fez todo esse trabalho que eu tinha na cabeça e não conseguia fazer, estás a ver? É como teres um retrato que queres pintar, mas não sabes como o fazer. Ela fez essa obra. Ainda pensei durante bué tempo em estudar produção, mas acho que, como tudo na vida comigo, tinha mesmo que me apaixonar por aquilo, como ando agora ando um bocado obcecada com o acordeão. Tinha de me obcecar por aquilo e simplesmente não aconteceu. Então, deleguei isso e acho que foi uma parceria que correu muito bem.

A Momma T e o Tiago Vilhena vão fazer parte dos “afortunados”, em conjunto com Catarina Branco, L-Capitan e Lo Kyo, que vão subir a palco contigo este sábado (16) no Tokyo, em Lisboa. Como tem sido preparar esse show?

Opá, tem sido super divertido, se bem que caótico. Mas a preparação deste espetáculo comprova uma cena em que eu acreditava, que é, quando a gente faz coisas com malta fixe e boa onda e que gosta de nós, tudo fica mais fácil. Pá, e não sei que raio aconteceu entre mim e a Catarina Branco. Nós encontrámo-nos num concerto, eu conhecia a música dela e a música dela para mim era bué what the fuck, estás a ver? Só que houve um momento em que eu pensei, não, isto é bué corajoso–

Mas é super deranged [risos].

Sim, completamente. Mas eu achei que aquilo era corajoso e nós precisamos de gente corajosa. No caso do Tiago Vilhena, não o conhecia de lado nenhum, mas por acaso ele estava a preparar uns concertos com a Catarina e ela pôs-nos em contacto. Eu disse-lhe que tinha uma música que foi quase toda ela feita por cima da “Etelvina”, fizemos uns ensaios, e aquilo deu certo. Depois, com o L-Capitan, ele é um bacano que está a começar a aprender guitarra portuguesa – foi ele que fez aquela cena maravilhosa na “Fortuna”… Num meio como o da música, em que às vezes há tanto oportunismo e tanta cena de ficar amigo de quem importa e de quem não importa, eu curto de ser amiga da malta misfit. No final do dia, é isso que a gente leva da vida. O L-Capitan, por exemplo, lançou um EP [Soturna EP] e está a fazer o seu caminho e é alguém com bué talento que está a trazer uma coisa engraçada e nova para a música. E no fundo, é malta que no fundo só quer fazer música, estás a ver? E que quer curtir a viagem em vez de querer chegar ali ou acolá. Quando nós nos juntamos todos para ensaiar, toda a gente diz que aquilo é um grande grupo. É bué fixe o ambiente. Senti-me bem, senti-me acolhida, senti-me não a boss da cena, mas alguém que fazia parte de algo maior do que eu própria. Acho que essa sensação é bué preciosa e bonita e é rara na música.

Hadessa por Joanna Correia
Fotografia: Joanna Correia
E sábado vai ser o teu aniversário também! Tens alguma cena especial preparada para o concerto?

Olha, é assim, tenho uma música nova, mas não sei ainda se a vou cantar porque ela é uma grande música para eu tentar concorrer ao Festival da Canção. Ainda estou a refletir sobre isso. A música chama-se “Queimar Tudo e Recomeçar” – que se calhar ainda é um working title, não sei [risos] –, mas que eu até curtia de testar.  Comecei a produzi-la com a Momma T, mas por acaso foi daquela altura em que ela me mostrou e eu disse que estava bué fixe, mas passado algum tempo, fiquei com dúvidas se era por ali que queria ir. É uma música super dançável, que fala sobre chegadas, do que vem a seguir. Escrevi-a depois de ter lançado a “Ruína”, que na realidade fala sobre uma certa condição médica no espectro da doença bipolar da qual eu padeço – é assim que a minha psiquiatra diz – e essa nova música surge derivada, não necessariamente dessas duas forças opostas existentes em mim, mas do questionar do que vem a seguir. A gente dedica-se a um projeto e depois, qual é o passo a seguir, não é? Essa nova música fala sobre a casa estar feita, e se está feita, vamos destruir tudo e voltar a construir. Acho isso uma coisa muito engraçada. Estive agora na praia com os meus filhos e passámos uma hora inteira a construir um castelo de areia pelo prazer de o deitarmos abaixo em dois segundos para depois voltarmos a construir. Por isso, o que vem a seguir não é necessariamente a continuação disto porque a pessoa que sou agora não é a pessoa que eu era no Fortuna. Penso muito neste conceito de mutabilidade do indivíduo e do crescimento. Passamos tanto tempo em miúdos a tentar descobrir qual é a nossa identidade para chegarmos a uma certa idade e dizermos “Bora destruir isto” e amanhã vamos fazer coisas novas, experimentar cenas. Fico com grande curiosidade por aqueles artistas que se mandam abaixo e voltam a começar e não sei o quê. Não acho que vá fazer isso com Hadessa, porque Hadessa foi algo que criei agora e parece que tive montes de tempo à espera que acontecesse. Na música portuguesa, há uma grande necessidade de nos colocar a todos em caixinhas, de dizermos que somos intervenção, pimba, fadistas, whatever. Eu detestaria ser apelidada de fadista, de música de intervenção ou rapper. Eu sou música na maior das pluralidades. Por exemplo, com Chão da Feira, nós fizemos o EP com seis músicas, mas nós temos para aí 20 e tal, 30 temas. Eu adorava fazer uma coisa com aquilo na onda de registar, de perpetuar um bocado a memória daquilo que eram músicas que cantámos durante anos. Era bué fixe. Com Hadessa, essa necessidade de registar vem mais projetada no futuro, não tanto em coisas que já fiz. Neste momento, não tenho nada. E é verdade que o Fortuna fala muito sobre uma relação que tive recentemente que era super inspiradora. Não sei porquê, mas era bué inspiradora! Não quero ser aquela pessoa que vai conhecer pessoas para depois falar sobre elas, mas quero bué fazer isso porque acho que é a natureza humana e das relações interpessoais que dá sumo a muita da música. Não sei qual fase de vida gostava de ser no próximo disco, mas o Fortuna é uma espécie de banda sonora para a minha emancipação e crescimento. E o que vem a seguir é a afirmação de um valor artístico que acho que todos temos, que é intrínseco e é inato, e que só precisamos de reunir as condições – no nosso país – para que este venha ao de cima.

Podes adquirir bilhetes para a apresentação de Fortuna no Tokyo, em Lisboa, através da app digital do Tokyo ou à porta.

Fotografia de destaque: Joanna Correia

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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