É do Porto que nos chega um dos melhores álbuns do ano no panorama musical português. vens ou ficas é o álbum de estreia de Carolina Viana. Se o nome não vos soa estranho é porque possivelmente a conhecem enquanto MC (poderosa e talentosa, afirme-se) em redoma, dupla portuense que se estreou em formato curta-duração com parte, considerado por várias publicações (BLITZ, Rimas e Batidas, Antena 3) um dos melhores discos nacionais de 2022. Tudo indica que tudo o que vem de Carolina Viana – chamemos-lhe agora Malva – é de uma qualidade suprema.

Não precisou de muito para arrancar as amarguras mais profundas. Bastou-lhe o sossego do seu quarto, uma guitarra emprestada e uma voz que implora por quietude absoluta na mente e no coração. Sim, fez tudo praticamente sozinha e o resultado foi este: um casamento perfeito entre uma sonoridade crua e visceral e uma narrativa desconcertante onde a verdade e a inquietação vêm ao de cima. Há sensibilidade. Há intensidade. Uma beleza que escorre entre lágrimas, lamentos, angústias e memórias, com significado e finalidade. Na sua estreia a solo, prova que tem o dom de fazer arte da vida, deambulando na incerteza com gentileza, para se (re)encontrar a si própria e aos outros.

Oficialmente munida de confiança nas suas capacidades, foca-se agora no seu projeto a solo, pronta para o levar mais longe. Isto a par com redoma, que continua ainda viva da silva. Em conversa com a Playback via Zoom, a artista fala sobre o caminho traçado até aqui e sobre o disco que a coloca no topo dos nomes mais excitantes na cena musical nacional – aí está a entrevista.

Capa vens ou ficas
Capa vens ou ficas. Fotografia por Pedro Ivan, artwork por Quelara
Quero começar esta conversa com uma pergunta simples, para quebrar o gelo. De onde surgiu o nome Malva?

Ok, essa é fácil, realmente. O nome Malva veio de um livro de flores que andei a vasculhar para encontrar precisamente um nome artístico. Este saltou-me à vista, porque pareceu-me bonito. Na verdade, até veio de uma malva-rosa, mas não me apeteceu pôr o «rosa» [risos], preferi só o «malva». Depois, descobri que, efetivamente, é uma planta bastante comum. É uma espécie de família de umas quantas plantas, que se encontra em qualquer lugar, e descobri também que está ligada à cicatrização de feridas. Acho que tem propriedades benéficas para a nossa saúde. Quais, em particular? Não sei, mas também não me interessa [risos].

Li numa entrevista que deste ao Rimas e Batidas, em 2022, que estudas música “há imensos anos” andaste em “algumas academias”, estudaste violoncelo e, depois, entraste para a ESMAE onde continuaste com o mesmo instrumento. Portanto, começaste muito cedo. Sempre pensaste fazer disto [música] vida?

Acho que, até hoje, não sei o que fazer muito bem com a minha vida [risos]. Mas então, não me via a fazer nada em particular, porque sempre gostei de muitas coisas diferentes. Ou seja, nunca tive uma profissão de sonho. Acho que nunca disse que queria ser médica ou bombeira ou bióloga. Portanto, a música acompanha-me desde muito cedo, mas também nunca foi aquela coisa de uma paixão assoberbada, era uma coisa muito natural. E continuou a ser, já não me imaginava a sair dessa área. Depois, tornou-se uma coisa um bocado mais séria quando entrei para a escola profissional de música, tão séria que aí tornou-se uma ligeira tormenta. Quando saí de lá, não sabia o que havia de fazer. Tive um ano parada e, depois, é que fui para a ESMAE. Portanto, só agora, muito recentemente, é que percebi que quero fazer disto vida. Efetivamente, agora aos 27 anos [risos], tendo encontrado outras formas de expressão na música, é que percebi que sim–

Mais vale tarde do que nunca, não é o que se diz?

É verdade. E ninguém me garante que daqui a uns tempos não me apeteça sair daqui. O que não é difícil, da maneira que isto está – não está muito fácil.

Lá isso é verdade. Mas diz-me então, porquê o violoncelo?

Fui obrigada [risos]. Fui mesmo–

[Risos]. Espera, foste mesmo?

Depende do ponto de vista. Tive um professor de música no quinto e sexto ano que acho que determinou bastante o meu interesse pela música, tanto que, na altura – no sexto ano, acho eu –, fui ver um concerto de uma orquestra júnior da minha futura escola profissional de música, fiquei super maravilhada com aquilo e quis-me inscrever. Então, no sétimo ano, fui para a escola profissional de música. Só que nessa escola faz-se uma espécie de provas de aptidão. Tu experimentas cada instrumento e, no final, fazes tipo um top três dos teus instrumentos favoritos. O violoncelo não entrou no meu top, sequer [risos]. E, depois, os professores dão o seu parecer. Portanto, há aqui uma conjugação de vários fatores: o teu top com o top do professor tipo “olhem, este é fixe, este é não sei quantos” e a necessidade da escola para equilibrar os diferentes naipes, porque depois há uma orquestra e, pronto, não convém haver tipo cinquenta violinos e três violoncelos. Não dá. Então disseram-me que ia para violoncelo. Na altura, fiquei bastante triste, porque queria sopros ou percussão, nem sequer queria cordas [risos]. Mas lá me convenceram. Isto aconteceu antes do verão. Depois, no verão, fui lá fazer umas experiências, andei a ter umas aulas de violoncelo e acabei por decidir ficar, assim meio contrariada, porque também não ficava na escola de música. Foi um companheiro fixe com o qual tenho uma relação, por vezes, de amor-ódio, mas agora cada vez mais de aceitação.

Foi o primeiro instrumento em que pegaste?

Não, já tinha tocado guitarra quando era pequenina, mas depois larguei – a experiência foi muito curta.

Li também que foi na ESMAE onde conheceste a Joana Rodrigues, com quem formaste o projeto redoma. Como surgiu esta vontade de fazerem arte juntas?

Olha, acho que estávamos as duas um bocado à procura de um pretexto para fazer algo, de facto, nosso. Venho deste lugar de um ensino erudito, muito virado para a reinterpretação de obras e estudar os grandes autores, portanto não tanto para a parte de criação e de expressão própria. E isso acaba por… Quer dizer, ia dizer que acaba por fazer falta, mas não sei se faz falta a toda a gente. A mim fez e acho que à Joana também. Como a vida é feita de muitas coincidências [risos], coincidiu isto acontecer no período da primeira quarentena, quando uma pessoa estava mais por casa. De repente, surge mais tempo para experimentar coisas nunca antes feitas. A Joana já se tinha fartado de fazer beats e de fazer música, mas eu nunca tinha escrito. Então, ela enviou um beat, a mim e a uma amiga, e não foi para eu escrever, enviou só tipo “fiz isto”. Não sei o que aconteceu [risos], mas peguei naquilo e escrevi uma cena por cima. Essa música não é conhecida publicamente [risos], apesar de ser muito fofa e de eu a guardar com todo o carinho. Foi assim a primeira experimentação de redoma. Mas percebemos que aquilo, se calhar, era fixe, e que devíamos experimentar fazer mais umas coisas – e assim foi. Muito devagar, muita brincadeira e galhofa no início, até que, de repente, tornou-se algo que queríamos lançar – assim sem sabermos muito bem o que era lançar música. Mas lançámos.

Em 2022, estrearam-se em formato curta-duração com parte e, recentemente, lançaram o single “delírios mensais”. Tu dás voz e a Joana produz a poesia de ambas, tem funcionado sempre assim até à data, certo?

Maioritariamente, sim. Claro que, por vezes, também dou os meus pareceres, mas não têm, sequer, a dimensão daquilo que a Joana faz. Há um tema, que ainda não saiu – nós gostávamos que saísse este ano, mas já não sei se vai a tempo, porque, entretanto, surgiu o meu álbum e assim, e a coisa atrasou um bocado –, e que partiu de mim, no início, e isto não costuma acontecer. Assim como a “extremidades”, que é uma das faixas do meu álbum, é com baixo e voz, e por acaso fiz outra assim num loop também de baixo, em que escrevi umas coisas por cima. Entretanto, fez sentido para redoma – a Joana pegou e deu a roupagem dela. Acho que terá sido assim a mais excecional, porque maioritariamente é assim que acontece, como tu disseste.

Nunca deste nenhum toque na parte da produção?

Não tinha, até à data, do lançamento deste meu álbum a solo, grande experiência na produção. Até porque me recusava bastante a fazê-lo, porque sempre achei que não tinha jeito e precisava de muito tempo para aprender a mexer no Ableton Live – é o programa que passei a usar, que é o que a Joana usa também. Aquilo é um come-cacos [risos], tem partes mesmo difíceis, só que, de facto, se começar devagarinho a ir explorando e, de vez em quando, ir para fora da zona de conforto, aquilo vai. Em redoma, lá está, não me atrevo, porque a Joana é uma máquina, é uma produtora inacreditável, tanto que muitas vezes acham que o beat é de outra pessoa ou assim, mas é dela. E então o que é que eu vou fazer? Não vou fazer nada [risos]. Dou uns bitaites e ela gosta muito quando os dou, porque, pronto, sente que, de facto, estamos a chegar a algum lado em conjunto, que é esse o propósito também desta banda. Portanto ya, em redoma deixo bastante para ela.

Pergunto isto porque, ainda na mesma entrevista ao ReB, disseste: “não consigo gravar nada sozinha nem nada do género”. No entanto, aqui estás, com um álbum escrito e produzido inteiramente por ti (à exceção de um tema). O que te levou a dar este passo a solo?

Lá está, foi a Joana, foi ela que me incentivou–

A Joana está presente em tudo, portanto.

É isso, a Joana está sempre a impulsionar-me para eu fazer mais e melhor. Queixo-me muito… No fundo, estava a tentar arrastá-la um bocado a ver se ela produzia este álbum comigo, mas ela não estava muito p’raí virada [risos]. Tanto que andei frustrada muito tempo, a pensar como ia fazer, até ao dia do grande sermão – olha, aqui mesmo neste espaço que é o nosso estúdio [risos] -, em que ela me disse, numa longa conversa – eu é que resumo em três palavras quase –, “faz-te à vida”. Basicamente, foi isto. Assim intensamente. Já tinha dado os primeiros passos no Live, também por ela, a propósito dos espetáculos de teatro para os quais eu já fiz música. Na verdade, queria fazer algo sozinha, mas achava que não tinha capacidades para tal, então isso levou-me a achar que precisava de gente, até que, lá está, ela me disse “tens capacidades, vai só”. Foi o melhor que ela me podia ter dito, porque, de facto, mexeu comigo e pus-me a trabalhar.

Como é que foi o processo de composição e produção deste vens ou ficas?

Então, há sempre qualquer coisinha no bloco de notas e no gravador do telemóvel. Depois, há muito que surge no momento. Em março, quando lancei o tema “extremidades”, percebi, de repente, que estava a anunciar que ia lançar um álbum a solo, porque ainda não estava muito inteirada dessa realidade [risos]. A partir daí, pus-me a mexer. Quando a “extremidades” saiu, acho que a única música que existia para além dessa era a “como se início”, que tinha surgido no verão do ano passado. Todas as outras surgiram este ano e foi mais ou menos a partir da “extremidades”. Penso que comecei a juntá-las, de facto, e a escrevê-las, a partir de julho. Foi quando comecei a ir ao bloco de notas e ao gravador, e ver o que tinha para lá, e começar a montar este puzzle todo. O que se segue? Segue-se… Vou gravar primeiro as guitarras todas, gravei-as no meu quartinho, sossegada, sozinha [risos]. Tudo com material emprestado, é também uma coisa que gosto de dizer, porque me fascina esta ideia. Primeiro, porque gosto que os meus amigos estejam envolvidos, de alguma forma, nisto. Segundo, porque é algo assim quase impensável, hoje em dia [risos]. Então, a Joana emprestou-me a placa de som, o João Fonte emprestou-me um microfone, eu, por acaso, tenho um cabo–

Por acaso [risos].

[Risos] Por acaso. O Rui Lima emprestou-me a guitarra e, pronto, comecei… Gravei tudo com o mesmo microfone, também nem quis saber se era com microfones apropriados ou não [risos]. Mas resultou bem, por isso ok. Pronto, gravei as guitarras todas, mais ou menos de uma assentada, assim durante alguns dias. Quando tinha as bases todas feitas da guitarra, comecei a gravar as vozes. A parte da escrita, sinceramente não sei responder muito bem, porque elas vão surgindo. Há coisas que saem de uma assentada, outras que, lá está, vou repescar ali no bloco de notas e acrescentar qualquer coisa e assim. Mas tudo sempre em função do todo. Na verdade, perceber como o tema funciona do início ao fim. Acho que é sempre esse o meu pensamento. Não escrevo tipo uma coisa e penso “isto tem que ser de determinada maneira” – não. É uma coisa que vai surgindo, a não ser quando excecionalmente há canções que são vómitos assim de uma assentada, e isto acontece. É o caso da “manhã”, por exemplo, e também da “extremidades”. Foram tipo “tau, está feito”, nem sequer olhei mais para aquilo. Ou seja, cheguei ao fim e percebi que elas estavam completas.

Por acaso, isto vai ao encontro de uma das minhas questões. Queria saber se te lembras de alguma faixa que tenhas tido mais dificuldade em concretizar e também uma que tenha surgido mais facilmente.

Ok, ok–

Portanto, a “manhã” e a “extremidades” foram as que surgiram mais facilmente. Quais foram então as mais difíceis, se é que existem?

Olha, acho que foi a “espera”. Essa foi bastante repescada. Tinha alguma letra escrita, ou seja, tinha a ideia/essência da música, não estava era bem a encontrar ainda a forma, então demorou mais. Inicialmente, até pensei que pudesse ser com baixo também, mas depois não me fez sentido. Então, acabei por introduzir o eBow – é um aparelhozinho que faz vibrar a guitarra; é aquele som que a mim, às vezes, faz-me lembrar uma flauta assim meio longínqua. Tendo-o encontrado também levou essa música para um determinado caminho. E foram partes de letras, lá está, que sinto que são coladas, não tiveram propriamente um seguimento. O que é curioso, porque é a faixa que, na verdade, sinto que é a mais pausada de todas. Até eu tenho dificuldade em ouvi-la, às vezes, porque não estou habituada a tanta pausa [risos]. É mesmo muito calma. E, pronto, daí também o nome, eu acho. Está tudo muito ligado, porque foi preciso também algum tempo para chegar à conclusão daquele tema. Portanto, essa é uma delas. Mas há outra, a “como se início”. Talvez por ter sido das primeiras a ser escrita, estava a ser a mais difícil de integrar no ambiente que estava a criar agora. Como estava a ser uma coisa tão rápida… Na verdade, fiz este álbum muito rapidamente e, por isso, é que também está tão coeso no seu universo. Então, a “como se início” estava um bocadinho fora. Se calhar, também daí ter contado com a produção da Joana nesse tema, que me deu então o sentido para eu existir. Todas as outras foram bastante naturais.

Malva por Pedro Ivan
Fotografia: Pedro Ivan
Sentes que foste muito exigente contigo própria? Há pouco, falaste em frustração.

Sinto que sofri de frustração antes do momento de ter decidido fazer o álbum. A partir do momento que comecei, não senti frustração. Estava num entusiasmo imenso e a desfrutar muito do processo. Soube-me muito bem fazê-lo. Não tanto em termos de terapia relacionada com o motivo do álbum, mas mais com a coisa de eu própria me emancipar, no sentido de fazer alguma coisa sozinha. Foi muito importante para mim ir percebendo, ao longo do processo, que conseguia fazer isto sozinha: “consigo gravar isto, consigo gravar vozes a seguir, consigo fazer aqui uma produção – ok, está a fazer sentido”. O entusiasmo trouxe-me, de facto, um alívio qualquer. No entanto, não deixei de ser exigente. Quero dizer que não foi tudo um mar de rosas. Houve dias, claro, que fiquei chateadíssima, porque alguma coisa não correu tão bem naquele dia em que gravei, o que me levava a regravar. Odeio regravar, não há palavras [risos]. Por mim, é tudo à primeira, “pumba, já está, siga”. Então, é muito chato quando eu própria percebo que tenho de regravar. Quando alguém me diz, pronto, não tenho muito a fazer, provavelmente vou contrariar e tentar não regravar até à última. Mas quando eu sei que tenho de regravar, é porque tenho mesmo de regravar [risos]. Portanto, nesse sentido, fui bastante exigente. No entanto, tenho a coisa de “se à primeira saiu, eu ouço, vejo que faz sentido, encontro ali qualquer coisa que justifique certa sonoridade, vou simplesmente aceitar”. É isto.

Gosto de te descrever como uma poeta de uma invulgar maturidade e mestria nas palavras

Ai, uau. Adorei.

Dás muita importância à escrita. Há pouco, mencionaste que as letras simplesmente “vão surgindo”. Sentes que é uma cena que já vem de ti ou há influência por detrás?

Isto leva-me logo a pensar que eu, às vezes, não sou dona das minhas ideias. Eu própria, às vezes, luto com esta ideia, porque elas aparecem e eu simplesmente escolho-as tipo “ok, vou aproveitar esta”. Portanto, não sei bem responder a isto. Há coisas que consigo reconhecer, por exemplo que, se calhar, tenho alguma sensibilidade em escolher certas palavras e ideias. Mas de onde é que isso vem? Não sei muito bem [risos]. Desde sempre, tive também em contacto com muita música e poesia. Os meus pais estão muito ligados a isso enquanto consumidores, acima de tudo. Também nunca me limitei a um só género, sempre ouvi de tudo e, desde muito nova, que gosto de música que, se calhar, não era tanto para a minha idade. Por exemplo, música de intervenção portuguesa, que tem um lugar imenso no meu coração, ou música brasileira também. Tenho imensas influências disso tudo. E outra coisa, neste momento, não tento encaixar-me em lado nenhum, ou seja, não tento fazer música como aquela pessoa e assim, e isso é bastante importante, porque se tentasse fazer isso, estaria limitada, de alguma forma. Então, não tentando fazer, estou a ser honesta comigo e isso abre espaço para me aprofundar mais, para tentar trazer alguma coisa um bocadinho menos vulgar, se é que é possível.

Não só é possível, como o conseguiste fazer.

Tu podes dizer isso, mas eu não posso [risos].

“Mas eu não quero saber / Porque esta história é só minha / E mais ninguém viveu esta” é um dos versos do tema “apontamento”. Que história é esta?

[Risos]. Olha ela–

[Risos]. Na tua entrevista para o Manual de Canções, da RDP Internacional, falas de “uma história de desamor”. Interessa-me saber um bocadinho da história por detrás do teu álbum.

Um bocadinho só [risos], se não fico logo toda… Tenho bastante dificuldade nesta parte–

Sem pressão, conta apenas o que sentires mais confortável.

Efetivamente, cada um tem a sua própria história com nuances muito próprias e, certamente, distinguidas, e pronto, a minha é mais uma. Literalmente mais uma, mas que tem a sua singularidade também. É uma história de desamor, porque, primeiro, partiu de um amor que, por diversos fatores, muitas vezes não diretamente relacionados comigo ou com a outra pessoa, não deu para continuar. Com as suas mágoas, com as suas feridas, nunca a desrespeitar o lugar dessa pessoa, porque tem o seu lugar muito importante na minha vida e eu terei também. Não está ligado propriamente a alguma coisa que me fizeram, é simplesmente perceber que devido a isto e àquilo – é isso que eu dispenso totalmente dizer [risos] –, não dá para seguir da mesma forma que se viveu até ali e a forma que se viveu até ali foi demasiado boa, foi um período da minha vida mesmo muito bonito que guardo com todo o amor possível, mas que se revelou não poder continuar naquelas condições. Era preciso uma distância e a distância é sempre uma coisa bastante dolorosa, principalmente quando vem de um sítio que não partiu de um desentendimento propriamente – tipo de uma traição qualquer. Não é isto. É só aceitar que não funciona. Então, isso, às vezes, pode ser bastante mais doloroso do que um acontecimento qualquer que gerou e há um motivo, e pronto, do tipo “sei perfeitamente que não quero ver esta pessoa mais à minha frente”. Não. Para mim, é o que me dói mais e doeu bastante, como acho que dá para perceber [risos].

“Não é o que te acontece, é como reages a isso”, tenho ouvido e pensado muito nisto ultimamente e acho que se adequa perfeitamente a ti e à tua música.

Ai sim, sem dúvida. É sempre uma forma muito específica minha [como reajo], lá está, e acho que cada faixa do álbum reflete coisas diferentes desse processo – que é um processo já pós-fim da relação, onde há momentos em que me vou relembrar do quão me sentia bem–

Ia precisamente entrar por aí a seguir. “Umas [canções] são de regresso. Outras [canções] são de um momento em específico, por exemplo, a “extremidades” foi escrita precisamente quando estava tudo a acontecer”, disseste ainda em entrevista. Portanto, escreveste em fases diferentes, o que quer dizer – suponho eu – que estavas a lidar com sentimentos diferentes.  

Certo. Lá está, penso que na “extremidades” estava mesmo muito envolvida naquele momento de revolta e, honestamente, acho que não há mais nenhuma que se compare a esta canção, nesse sentido. Daí também ter sido a primeira a sair, ou seja, já tinha passado bastante tempo do que aconteceu, mas ainda estava extremamente revoltada com tudo. O que se seguiu foi realmente revisitar esses lugares e sentimentos, porque também já percebi que eles vão continuar aqui e dá para ir lá. Claro que não consigo ir agora à “extremidades”, por exemplo. Já está demasiado fundo para lá ir, mas a uma ou outra consigo.

Faz todo o sentido, até porque a “extremidades” é a faixa do álbum que mais profunda e crua soa.

Exato. E olha, ela está no meio do álbum e acho que o que acontece para trás da “extremidades” não é inteiramente uma linha cronológica, mas é quase. Isto para dizer que nos temas que antecedem a “extremidades” foram revisitados sentimentos antes da “extremidades” acontecer. Daí para ir até bem longe lá de trás, só não dá, às vezes, para descer tão fundo. 

Tu inicias o disco com “intro” e terminas com “nota final” que dá imediatamente a ideia de uma narrativa com um começo, meio e fim. O objetivo era este, desde início? 

Claro, claro. Gosto sempre destas coordenações e gosto da ideia de… É que, na verdade, o que acontece é que a “nota final” acaba por ser um revisitar da “intro”. Portanto, esta ideia de revisitar é sempre muito relevante aqui… e bonita e verdadeira. Portanto sim, acho que é para criar um todo fechado, porque, lá está, sinto que o álbum faz um círculo. O que acontece no meio pode soar confuso a nível cronológico, mas tentei encontrar um sentido para a posição de cada faixa deste álbum – e, na altura, encontrei, de facto.

Em antecipação do álbum, lançaste ainda “como se início”, a única faixa que não produziste sozinha. Tiveste a ajuda da Joana. Sentes que por ela fazer parte do teu percurso até à data, fazia sentido incluí-la neste trabalho a solo?

Naturalmente isso aconteceu, porque é uma pessoa com quem estou muitas vezes na minha vida, foi a pessoa que impulsionou a realização e a concretização deste álbum. É uma pessoa que desempanca muita coisa, inclusive esta música [risos]. Então, é maravilhoso que ela tenha ficado aqui marcada neste trabalho.

No mais recente single, “manhã”, que acompanhou o lançamento do LP, cantas em uníssono com o Luís Duarte Moreira. Como surgiu esta colaboração e, para ti, o que é que ele acrescentou à canção?

Olha, comecei a compor esta música no verão deste ano também, p’raí em julho, em casa da INÊS APENAS e acabei-a em casa do Luís [risos], com ele lá à beira. Portanto, ele estava por lá, também deu os seus bitaites e acabou por fazer sentido que ele fizesse parte. Desde que o conheço que ele canta super bem… Ele é ator, mas canta muito bem, então gostei de o transportar também aqui para dentro, porque também é uma pessoa super importante para mim. É um dos meus grandes amigos, assim como a Joana. No fundo, sempre que posso tento trazer quem eu acho que também pode vir a beneficiar com isso, de alguma forma. Não foi este o principal motivo, de todo, porque, lá está, fez-me super sentido que ele fizesse parte desta música e porque aconteceu naturalmente estarmos os dois ali a batalhar. Na verdade, batalhámos pouco, porque foi bastante rápido, numa noite resolvemos isso. Mas pronto, é isto, foram vários fatores. 

E tens alguma canção pela qual sintas um carinho especial?

Olha, quando acabei o álbum, fiquei completamente apaixonada pela “intro”, que foi a última a surgir. Criei uma intro porque me fazia sentido uma coisa ali para criar clima [risos]. Fui repescar o pequeno versinho que a “intro” tem, porque já o tinha escrito há algum tempo, já o tinha cantado e já tinha a melodia feita. Depois, criei a guitarra e tudo o resto para ele. E foi à primeira. Pronto, lá está, os primeiros takes milagrosos. Guardo mesmo um carinho gigante por esta faixa. Na verdade, [o álbum] já massacra um bocado, se calhar pela temática, mas a “intro” não tem isso. Para mim, tem a mensagem mais bonita. Depois, a “manhã”, que foi a penúltima a surgir… Acho que gosto das mais recentes. São as menos massacradas [risos], se calhar é por isso. Mas é isso, a “intro”, a “manhã” e, talvez, a “subida” também. Daqui a pouco estou a dizer o álbum todo [risos]. Vou parar, ficamos por aqui [risos].

[Risos]. Pronto, ficou um top três.

Ai, se bem que falta a “extremidades” [risos] pela qual também tenho um carinho imensamente–

[Risos]. Ora então, temos um top quatro.

[Risos].  É isso mesmo. Primeiro, a “intro”. Depois, a “manhã” e a “extremidades” estão ao mesmo nível e, por fim, a “subida”. Está feito.

Relativamente ao nome do disco, vens ou ficas… É interessante como esta conjunção que usas meio que emite uma pergunta, contudo não tem ponto de interrogação. Ou seja, acaba por soar mais a uma afirmação. Explica melhor esta ideia. 

Ora bem, este título veio-me à cabeça, mas imaginei-o com um ponto de interrogação. Depois, olhei melhor, não gostei e resolvi tirá-lo. Primeiro, porque é desnecessário. É uma expressão tão comum que é inevitável sentir que é uma pergunta. Depois, tirando o ponto de interrogação, cria-se uma dúvida maior é que, a sério, ninguém pára de me perguntar por que é que não tenho um ponto de interrogação [risos]. Então, acho que resultou. Fiz o que tinha a fazer que era precisamente criar dúvida, que foi aquilo que vivi [risos] durante este processo final. Portanto, a dúvida está muito presente e a inquietação também. Para além disso, agrada-me a ideia de ser uma expressão tão comum, porque, lá está, a minha história é mais uma, o que quer dizer que toda a gente tem uma ou várias histórias que provavelmente passam um bocado por aqui, por um vens ou ficas. Portanto, acho que fazer música também é tentar encontrar o outro e, portanto, se conseguir transmitir isso até com o título já é bom.

Em termos sonoros, nota-se aqui um cariz exploratório. O disco é muito à base de guitarra acústica, sobreposição de camadas de guitarra e vozes, e ainda ouvimos, ali e acolá, um apontamento de baixo elétrico (na “extremidades”) e de violoncelo clássico (na “ombro). Porque optaste por este som mais cru e visceral?

Porque inevitavelmente era o que transmitia melhor a minha forma de estar naquele longo período. Depois, fugi também um pouco à superficialidade e à máquina da música que se faz hoje em dia. Parece-me importante também envergar um bocado por este caminho – eu, pelo menos, sinto essa necessidade. E não é que não goste de ouvir a máquina e a superficialidade – eu gosto –, mas há momentos que chega, também preciso de outras coisas. Preciso de um bocado de profundidade, de coisas que me façam refletir e que me inquietem, em que acabo de ouvir e fico “ai, o que é que acabou de acontecer?”. Gosto quando isso me acontece, que não é assim tão comum. Mas é bom saber que consegui transmitir isso a algumas pessoas. Na verdade, era o meu objetivo e, portanto, daí também a escolha desta atmosfera, instrumentação e opções de produção, mix e master.

Malva por Pedro Ivan
Fotografia: Pedro Ivan
Foste uma das selecionadas na categoria de Música na Mostra Nacional Jovens Criadores, uma iniciativa do IPDJ (Instituto Português do Desporto e Juventude) organizada pelo Gerador, de promoção de novos talentos mais relevantes em Portugal. Tiveste a oportunidade de mostrar a tua arte num evento oficial em Vila do Conde. Como é que foi a experiência?

Olha, na verdade, fui selecionada para duas categorias até – para a de Música e para a de Cruzamento Disciplinar, esta última com redoma e esta vencemos. Foi com o tal tema – sobre o qual já mencionei – que ainda não saiu. Pronto, esse tema vai-se fazer acompanhar por um vídeo de uma videógrafa chamada Mariana Vasconcelos com uma coreografia de duas amigas minhas, a Sara Neves e a Inês Carneiro. Isto para explicar esta categoria que é precisamente a fusão de várias áreas. Portanto, toda esta experiência foi bastante interessante, porque apresentei-me lá na Mostra, estava bastante nervosa, não sabia o que ia acontecer e, ainda por cima, estava selecionada para duas categorias. Imagina, não conhecia a Mostra até este ano, o Gerador está a fazer um excelente trabalho a divulgar a Mostra e é de extrema importância ele existir. Agora, apresentar-me lá fez-me lembrar os meus tempos de Conservatório, quase. Não havia backstage, depois era tudo assim com uma luz intensa, todos à espera para ir tocar a seguir – tudo um bocado estranho, não gostei muito dessa parte [risos]. Na verdade, também não gostei da parte da gala onde se entregava os prémios, porque foi uma grande seca ouvir os políticos todos relacionados com Vila de Conde a dizer “boa tarde, Exmo não sei quantos” e etc. Isto para no final atribuírem um prémio de 1000€ a um artista emergente, é quase gozar com a nossa cara. Primeiro, temos que levar com aquela pranchada toda, com aquelas etiquetas ridículas, para depois darem 1000€ que não serve para absolutamente nada. A iniciativa é maravilhosa, têm de existir mais, mas é quase assim para aquecer ali o ego da malta que está ligada a isso. Então, estas coisas mexem muito comigo. Não conseguia estar mais naquela gala, principalmente porque também estava na expectativa de saber se ganhava ou não. 1000€ é pouco, mas dá sempre jeito, principalmente quando é para investir nestas coisas. Foi esta a experiência. Não ganhei a categoria de Música, mas meio que fiquei aliviada, porque sinceramente já nem me apetecia subir àquele palco [risos] e já sabia que tínhamos ganho a outra, portanto já estava satisfeita. Se ganhasse os dois ainda parecia um bocado cunha, também não queria isso [risos].

Vais dar o teu primeiro concerto de apresentação do disco nos Maus Hábitos, no Porto [ocorreu no passado dia 16 de novembro]. O que tens preparado?

Ok, vou apresentar o álbum todo, com uma ligeira alteração de ordem dos temas. Uma coisa é estar em casa a ouvir, outra coisa é estar ali de pé a ver o concerto. Então, às vezes, é preciso dar assim uma dinâmica. Se bem que, coitados, não vai ser fácil, porque é um concerto um bocadinho pesado. Mas não vou sozinha, porque achei por bem convidar uma guitarrista, a Catarina Estácio, que me tem acompanhado nestas primeiras apresentações assim para treino, pela calada, que não anunciei muito, mas já fizemos três [risos]. Foi mais para experimentar. Portanto, ela vai tocar guitarra, eu, de vez em quando, vou fazer uns apontamentos de guitarra, vou-me focar essencialmente na voz, vou tocar a “extremidades” também com o baixo e vou levar o meu amiguinho, o Luís, para cantar comigo a “manhã”. Não sei se vou levar mais algum tema ou não, ainda vou pensar [risos]. Mas se acontecer, acho que é para desanuviar um bocado. 

Para terminar, o que procuras transmitir a quem te ouve?

Essa pergunta é aquela do “o que dizem os teus olhos?” [Risos].

[Risos]. É quase isso, ya.

Ora então, numa palavra: verdade. Sem dúvida nenhuma. É o que sinto que é necessário, hoje em dia, porque já não sei também muito bem naquilo em que acreditar, o que ouvir, ver ou ler, estou um bocado perdida. É muita coisa. Mas sinto falta de alguma verdade, portanto é isso.

Agora é a parte em que choras [risos].

[Risos]. Já passou essa parte, não quero mais chorar.

Fotografia de destaque: Pedro Ivan

Malva vai atuar a solo e enquanto parte de redoma na próxima edição do Festival Emergente, a ocorrer no Musicbox, em Lisboa. Bilhetes aqui.

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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