É um dia fusco no Porto, mais um no meio de outros tantos. Por entre algumas nuvens cinzentas, escassos raios de sol espreitam, aquecendo ligeiramente a pele de quem caminha pelo centro da cidade. A chuva ameaça, mas só algumas horas depois cai com força – cortesia da tempestade Martinho. Estamos a meio de março, Inverno a transformar-se em Primavera. Vamos em direção à Rua da Galeria de Paris, em plena Cidade Invicta, para nos encontrarmos com quatro jovens que formam a mais recente “coqueluche” do rock portuense: os Marquise.

Nessa tarde de quarta-feira, Mafalda Rodrigues (voz, letra, guitarra e teclas ocasionais), Miguel Pereira (guitarra), Miguel Azevedo (baixo, sintetizador ocasional) e Matias Ferreira (bateria) encontram-se dentro de um dos edifícios da Rua da Galeria de Paris, mesmo ao lado de onde antes se localizava o já saudoso Café Au Lait. Ali, localiza-se o estúdio onde ensaiam, onde vão passar as próximas oito horas a delinear arranjos para apresentarem as canções de Ela caiu, o seu álbum de estreia, pelos palcos deste país ao longo de março e abril.

Ao longo dos dois últimos anos, os Marquise primeiro revelaram-se e depois confirmaram-se como uma das bandas mais promissoras do rock nacional. No seu EP homónimo de estreia lançado em 2023 pela Saliva Diva, editora também responsável pela edição de Ela caiu, conjugaram canções orelhudas com um virtuosismo impressionante.

Capa Ela caiu
Capa Ela caiu

Agora, em Ela caiu, o quarteto afinou as suas benesses. Se MARQUISE soa como uma banda a tentar descobrir o que quer ser, Ela caiu soa a uma banda que sabe o que é e para onde quer ir. Em Ela caiu, os Marquise aparentam estar em total controlo sobre o seu destino. Como? A Playback tentou descobrir uma resposta para essa pergunta.

Os Marquise e a cidade que “não para”

Fez todo o sentido que viéssemos até ao Porto assistir a um ensaio dos Marquise e conversar com a banda. Afinal, esta é a cidade onde cresceram, a cidade onde se conheceram, onde começaram a tocar juntos, o local que descrevem e sobre o qual cantam em Ela caiu. A dado ponto, como afirmaram à Time Out Lisboa, chegaram mesmo a ponderar dar o título de Cidade ao álbum. Mais ênfase seria impossível, mas talvez fosse demasiado óbvio relativamente à temática do disco.

Assim, o título de Ela caiu pode ser interpretado de várias formas. De um lado, claro, a degradação da cidade do Porto, pintada em canções como “Cidade” (“Andaimes por tudo o que é sítio / Já não há uma cidade em liso”); do outro, a queda de uma personagem que vagueia pela cidade em busca do seu fado, apresentada em canções como “Fauno”, rock irreverente, ou “Ofélia”, tragédia Shakesperiana convertida em pop rock. Em ambas as canções, esta personagem passa por peripécias, possíveis desaires, óbvios desastres, enquanto tenta descobrir quem é. Tal como a cidade do Porto parece estar perdida sem destino, também esta personagem parece estar sem rumo.

Ela caiu não é propriamente um disco conceptual, mas há um fio condutor que liga as canções do álbum: as experiências dos membros da banda na cidade do Porto, particularmente as de Mafalda. É ela quem dá voz às canções dos Marquise, é ela quem escreve as letras destas malhas. “É normal que as letras sejam sobre o Porto porque tento sempre incorporar a minha leitura do que é a cidade”, reflete a vocalista da banda. Mafalda, que fora da banda estuda arquitetura, considera que é “fácil identificar” a Cidade Invicta não só “nas letras”, como também na “própria música” da banda. “É o ambiente das canções”, afirma. As pessoas relacionam-se. “As pessoas do Porto, pelo que me vão dizendo, conseguem ver na nossa música a memória e a experiência coletiva do que é viver cá”, confessa Mafalda.

Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo

Em Ela caiu, é mais fácil reconhecer a relação dos Marquise com o Porto do que no EP homónimo. As canções de MARQUISE carregam em si a sujidade característica do rock nortenho, mas faltava-lhes um je ne sais quoi noturno que surge agora em Ela caiu para ser realmente rock portuense. Logo a abrir o álbum, “Fauno” posiciona-nos no centro da noite do Porto, um pouco como “In àr gCroíthe go deo” nos posiciona no centro de Dublin em Skinty Fia dos irlandeses Fontaines D.C., uma das grandes referências sonoras para Ela caiu. Contudo, se, entretanto, os Fontaines D.C. cantaram que “I feel alive in the city you despise” em “In The Modern World” de Romance, o sucessor de Skinty Fia, os Marquise estão eles próprios a tentar perceber como se relacionam com a versão atual da cidade do Porto, a cidade onde nasceu a banda em 2022.

O primeiro concerto “não-oficial” dos Marquise foi na Faculdade de Belas Artes do Porto, mas a banda considera que o seu primeiro concerto verdadeiro decorreu alguns meses mais tarde, na abertura do ano letivo da Faculdade de Arquitetura de 2022. Antes disso, Mafalda, Miguel, Azevedo e Matias já se conheciam há algum tempo e já tinham inclusive tocado juntos. Miguel e Matias conheceram-se no 5º ano; Azevedo passou a ser amigo quando transitaram para o 9º ano e Mafalda quando Miguel e Matias foram estudar para a Escola Artística Soares dos Reis, hub eterno do universo artístico portuense. Por acaso, o destino colocou os quatro dentro de um estúdio a ensaiar.

“Uma vez, eu, o Miguel e o Matias íamos a caminho de um estúdio no Marquês para tocarmos covers. A caminho do estúdio, o Miguel encontrou a Mafalda, que veio com ele ter connosco. Descobrimos que gostávamos de fazer música uns com os outros e decidimos continuar”, contou Azevedo em conversa com a Forum Estudante. De tocarem versões a construírem originais foi um tirinho, e assim nasceram canções do EP como “Nave”, o primeiro original dos Marquise. Pouco tempo depois, já a banda tinha material suficiente para um curta-duração, que viriam a gravar nos Estúdios Cedofeita.

Porém, desde que os Marquise começaram a fazer música, muito já mudou no Porto, e a banda incorporou essas mudanças na música de Ela caiu. Para Mafalda, as constantes mudanças que observou na cidade nestes últimos tempos são “superficiais”, mas suficientes para impactarem aquilo que se tem vivido no Grande Porto nos últimos anos: descaracterização, perda de identidade, gentrificação. Em consequência, a crise da habitação, as rendas altas, a pandemia do alojamento local, têm empurrado as pessoas para a periferia da Invicta, para locais como Rio Tinto, casa dos 800 Gondomar, ou Santo Tirso, local de onde são oriundos projetos como O Triunfo dos Acéfalos ou Gonkallo.

“A malta que está a fazer cenas fora do Porto está a fazê-lo em resposta a essas mudanças porque é aí onde estão as pessoas”, afirma a vocalista. No entanto, Miguel Pereira relembra, que apesar de todas as mudanças os músicos e artistas do Porto continuam a arranjar forma de criarem locais, como a Socorro, onde existe “espaço para o underground e bandas emergentes”, e que é casa de eventos como o Xavalo Fest. Os Marquise, claro, já tocaram várias vezes na Socorro (mas nunca no Xavalo Fest). “O Porto tem uma comunidade muito próxima que se tenta ajudar uns aos outros”, sublinha o guitarrista. Os Marquise fazem parte dela. São, quiçá, o possível futuro centro dessa comunidade.

As canções noturnas de Ela caiu

Quando as luzes se apagam dentro da sala de ensaios dos Marquise, é sinal que é para começar a tocar. Afinal, a escuridão é crucial para entender as canções de Ela caiu. Por essa altura, já estamos há uns 20 minutos com a banda, a vê-los a montar o seu estaminé, a entrar no mood para ensaiarem. Tocam “Ofélia”, efeitos de guitarra a escutarem-se quase iguais à versão de estúdio. Há razão para isso. Um dos pretextos para a gravação de Ela caiu era que o disco fosse capturado ao vivo, com muito poucos overdubs.

“Começamos a gravar na altura em que morreu o Steve Albini e dissemos que íamos fazer um disco de homenagem ao Steve Albini”, brinca João Brandão, responsável pela gravação, produção e mistura de Ela caiu. “Eles queriam que o álbum soasse mais como uma banda a tocar”, elabora o fundador e engenheiro de som chefe da ARDA Recorders, estúdio portuense onde os Marquise gravaram o seu álbum de estreia.

Objetivo cumprido. Ela caiu soa, por isso, visceral nos seus momentos mais ruidosos e sensível nos seus momentos mais vulneráveis. Se MARQUISE sucumbia ao caos, Ela caiu soa mais controlado, mas sem resvalar completamente no clichê do segundo disco “maduro” de uma banda de rock.

Em alguns momentos, tal como a já referida “Ofélia”, Ela caiu tropeça nesse dogma. Contudo, tal como João Brandão refere, os Marquise têm soluções de escrita que os diferencia dos pares. Nesses momentos, como a explosão catártica da magnífica “Algodão”, os Marquise mostram duas coisas: que são uma bela banda a caminho de se tornarem uma banda grande e são um grupo com um vasto leque de referências. A catarse de “Algodão” grita rock alternativo do início dos anos 90 (Rage Against The Machine, Nirvana, Jeff Buckley), servido à moda de putos que gostam imenso de Fontaines D.C., IDLES ou Dry Cleaning. É música que concentra o rock das últimas quase quatro décadas num só disco.

Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo

“Temos referências muito diferentes uns dos outros”, indica Miguel Pereira. Nos Marquise, todos, à exceção de Mafalda, que tem formação em piano, têm formação em guitarra. Isso, talvez de alguma forma, influencia também os gostos da banda. Miguel Pereira e Matias Ferreira são devotos do rock alternativo dos anos 90 e adeptos do revivalismo de pós-punk britânico dos últimos anos; Miguel Azevedo, o “groove master”, gosta de Funkadelic e Sly & The Family Stone; Mafalda Rodrigues, o coração enigmático da banda, tem como referência maior Lena d’Água. Mas algo que liga todos? “A nossa referência em comum são os Pixies”, refere Miguel Pereira. “É a solução fácil para essa pergunta”, assinala Azevedo.

“Clicamos imediatamente em termos de referências sónicas e como eles pretendiam gravar o álbum”, relembra João Brandão. Foi Miguel Pereira a principal alavanca para que os Marquise enviassem um email à ARDA a comunicarem que gostavam de gravar o disco no estúdio com o engenheiro de som. “Queria que fosse o João Brandão a gravar porque é um dos melhores engenheiros de som e produtores do país”, opina o guitarrista, que acaba por revelar a verdadeira razão pela qual desejava que fosse João a gravar Ela caiu: a forma como este gravou Plástico, o primeiro álbum da segunda vida dos Glockenwise. Para João Brandão, ter sido esse o motivo pelo qual os Marquise quiseram gravar com ele foi curiosa. “Foi dos discos mais tirados a ferros que fiz em toda a minha vida”, revela. A experiência com os Marquise não foi semelhante, mas Ela caiu soa como se tivesse sido de facto tirado a ferros, sempre no limite. Só existe tempo para respirar em “De alguém hão-de ser”, balada acústica obrigatória, composta por Matias Ferreira e cantada por Mafalda. “A tua voz doce e rouca / Só me faz lembrar / Ao ouvido eu ouço / O meu coração estalar”, escuta-se. Encantados ficamos.

Quando os Marquise entraram em contacto com João Brandão pela primeira vez em abril de 2024, tinham passado o ano anterior a poupar para gravarem na ARDA. Tudo o que recebiam de concertos e não era gasto a pagar despesas, era colocado num pote com esse destino. Conseguiram atingir a sua meta. Porém, ao primeiro contacto, João não estava ciente de quem eram os Marquise. Não conhecia a banda. Todavia, por recomendação de um colega de trabalho que encontrou o email perdido na caixa de correio do estúdio, foi ouvir MARQUISE.

“Ouvi o EP e achei as canções bastante interessantes”, recorda. A seguir, outra coisa lhe chamou à atenção. No email enviado à ARDA, os Marquise referiam que procuravam alguém que “fizesse algo bastante diferente do EP”. Queriam alguém que captasse o lado cru da banda, alguém que trouxesse à tona os sentimentos mais sombrios da sua música. Após os Marquise e João Brandão se reunirem, fez sentido para ambas as partes que este ficasse também com a cadeira de produtor de Ela caiu. “Eles deram-me carta branca, o que foi super fixe para mim também”, conta.

Os Marquise chegaram à ARDA no início do verão de 2024 com o intuito de gravarem as canções que tinham passado o ano anterior a preparar. Duas delas, “Delírios” e “Espanco de Espírito” (que tem uma bateria pedida emprestada a uma malha de Jeff Buckley, confessa Matias), vinham ainda da primeira fornada de canções da banda, e estiveram próximas de serem incluídas no EP. Porém, havia um problema: falta de dinheiro para as gravar. Assim, essas duas malhas ficaram guardadas para o disco e o EP foi concluído com “Boneca” e “QuatroQuatroCinco”, duas canções cuja sonoridade revela-se mais sombria em comparação ao restante EP. Já era uma pista deixada pela banda para onde iriam a seguir.

“Há uma linearidade em como as coisas soam”, afirma Azevedo. Os Marquise queriam tornar a sua música mais misteriosa e noturna, recheada de “tonalidades mais tristes”, como conta Mafalda. Os Marquise fizeram um disco algo triste e surrealista porque precisavam de o fazer assim; o mundo assim o pedia, o “espírito maligno” que paira pela cidade do Porto assim o requeria.

Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo

“Acaba por nunca existir uma estrutura definida para as canções”, assinala Azevedo. Miguel Pereira concorda. “Somos bastante espontâneos nesse aspeto”, afirma. Os Marquise encaixam as suas ideias musicais com o intuito de soarem bem em conjunto. Depois, Mafalda tem a tarefa de associar as suas letras à música. Em Ela caiu, a sua poesia adota uma vertente mais surrealista, não tão direta como nas canções de MARQUISE. “É um testemunho pessoal e a maneira mais fácil de não mostrar isso é escondê-lo”, brinca a vocalista. “Queria que fosse o menos literal possível porque isso também é o que dá piada às cenas”, nota. O exercício de introspecção acaba por ser revelado ao longo do álbum, culminando num dos momentos mais desnorteantes de todo o disco: “Nuvem”. É a faixa que surge antes da sequência final, onde tudo desaba, onde a protagonista finalmente dá de caras com o seu fado. “Ela caiu”, canta Mafalda, em tom baixinho ao ouvido, antes de guitarras shoegazianas se elevarem em modo de coro. É uma faixa especial, uma das melhores dos Marquise. Existe por acaso.

Na ARDA, os Marquise começaram por gravar as bases no início do verão de 2024. Depois, voltaram aos estúdios ao longo dos meses seguintes, entre concertos, aulas, e a vida, para gravarem sons extra. Miguel Pereira, em particular, passou muito tempo com João Brandão em estúdio a tentar encontrar os sons que pretendia para a sua guitarra. Se em MARQUISE os instrumentais com maior destaque eram o baixo e a bateria, Ela caiu é um disco onde a guitarra é o instrumento principal. Pelo meio, enquanto os Marquise gravavam uma canção que acabou por não ser incluída na versão final de Ela caiu, João Brandão teve uma ideia: e se se abrandasse essa canção?

“A ‘Nuvem’ surgiu porque agarrei numa música que não ia entrar no disco e meti-a a tocar a metade da velocidade. Aquilo ficou a soar esquisito e tive a ideia de construir uma canção a partir da destruição dessa malha”, recorda. Ao longo das sessões de gravação seguintes, João Brandão e a banda transformaram esse outtake num shoegaze frankensteiniano delicioso. No final, Mafalda gravou a voz que abre a canção durante o descolar de um avião, o toque de midas que une toda esta brincadeira. “Foi das últimas canções a serem feitas para o disco”, relembra João Brandão. Um perfeito acaso, um momento de pura espontaneidade que bem podia definir os Marquise numa canção.

Uma banda que não se leva “demasiado a sério”

Enquanto os Marquise afinam os instrumentos, brincam a tocar pequenas secções de canções de bandas das quais gostam. Envergam por uns Tool, black midi, Nirvana, MÁQUINA., The Cure, Bloc Party. De alguma forma, há tons destas bandas pintados um pouco por toda a duração de Ela caiu. Isto revela algo sobre a banda que os conecta à vaga de pós-punk britânico atual que os influencia: bandas como Squid, Black Country, New Road, os supracitados black midi, os shame (o riff de abertura de “Cidade” bem podia ter sido roubado a canções de Songs of Praise). Bandas constituídas por músicos extremamente talentosos e versáteis, criadas pelo multigénero da Internet sem guilty pleasures, que veem os Radiohead tanto enquanto meme como referência. Bandas que não se levam demasiado a sério (ou assim o dizem), mas que não deixam de fazer música e canções extremamente sérias. Bandas que salvam vidas, bandas que criam cultos em torno delas. Os Marquise, em Portugal, a par dos Humana Taranja, são as referências desse movimento, de onde fazem também parte grupos como os Divã, Pato Bernardo ou Desire Haze. Mais do que “tirar o pó às guitarras”, como enunciou recentemente a Time Out Lisboa, estas são bandas que relembram que o coletivo ainda tem importância face ao individualismo triunfante.

Fotografia: Inês Aleixo
Fotografia: Inês Aleixo

Há alguns minutos, os Marquise aqueceram com “Ofélia”. Agora, estão em pequena pausa, a prepararem-se para tocar “Não quero ser” e, mais tarde, “Nuvem”. Já estamos com a banda há cerca de uma hora e ainda temos mais uma segunda hora com os quatro antes de os deixarmos ir à sua vida. Daqui a cerca de duas semanas, vamos voltar a encontrar-nos, no backstage do Musicbox, quando acabarem de apresentar Ela caiu na sala lisboeta. Uns dias antes, hão-de ter feito o mesmo no Porto, no M.Ou.Co. Entretanto, já se passou mais de um mês e os Marquise já levaram Ela caiu a Aveiro (ao Teatro Aveirense) e a Guimarães (ao Blackbox CAAA). Em três destas datas, levaram amigos com eles. No Porto, tiveram EVAYA a abrir, outra estudante da escola Saliva Diva; em Lisboa, os Humana Taranja, outra banda que de promessa já se fez grande, abriram o concerto; em Guimarães, as promissoras e barulhentas Lesma fizeram a primeira parte.

Num Musicbox extremamente bem composto, com muita gente aninhada e animada da cabine de som para a frente, pronta para o mosh e para o crowdsurf, os Marquise veem o seu culto voltar a aumentar. Em novembro, os Humana Taranja, responsáveis pela primeira parte do concerto de apresentação de Ela caiu na sala lisboeta, tiveram uma experiência semelhante quando apresentaram o excelente EUDAEMONIA na Galeria Zé dos Bois. Nesse dia, alguns membros dos Marquise estavam no público, em mais uma prova de que estas duas bandas têm mais em comum do que a amizade. Partilham públicos, referências, e, acima de tudo, a ideia de fazer música com amigos e fazerem amigos a criarem música.

“Revemo-nos neles porque, tal como nós, começaram a fazer música porque eram amigos”, recorda Marta Inverno, baixista dos Humana Taranja. A relação de amizade entre as duas bandas tem crescido desde que os Marquise vieram tocar ao Barreiro em outubro de 2023, à Sala 6, espaço onde a Hey, Pachuco!, mítica associação cultural barreirense da qual os integrantes dos Humana Taranja fazem parte, programa. No final desse ano, os Marquise voltariam a tocar em Lisboa, no Musicbox, como parte da edição de 2023 do Emergente, vencendo o prémio Melhor Concerto Super Emergente, consagração que lhes conferiu estatuto extra, um novo público em Lisboa, e uma oportunidade de tocarem na edição de 2024 do NOS Alive. Nessa noite, os Humana Taranja, que haviam tocado na edição de 2021 do Emergente, regressaram ao palco do concurso no Musicbox como banda convidada. A ligação Barreiro-Porto consolidou-se. “A partir daí, o contacto foi-se sempre mantendo”, indica Azevedo.

Para Matias, é possível observar a conexão entre os Marquise e outras bandas do circuito alternativo português. “Mesmo que não fosse por ligação direta, se olharmos para os festivais que rodamos no verão de 2024, partilhamos cartaz com alguns desses nomes”, afirma o baterista da banda. “Sinto que em Portugal, principalmente no cenário musical, mal entras no circuito, conheces toda a gente”, opina Mafalda. “Senti mesmo que fomos bastante bem recebidos e nunca foi estranho para nós conhecer pessoas neste meio”, acrescenta a vocalista e letrista da banda. “A malta tem tendência a apoiar-se uns aos outros”, afirma Miguel Pereira.

Para Ricardo Cabral, baterista dos Baleia Baleia Baleia, técnico de som dos Marquise, e um dos fundadores da Saliva Diva, são afirmações destas que dão força à editora para continuar. “Acho que isso é um dos maiores objetivos da nossa editora, que sejamos todos uns para os outros de alguma maneira”, refere. Matias, a falar pela banda, refere como a Saliva Diva os ajudou a integrarem a comunidade musical do Porto. Essa camaradagem fez com que a ligação entre a banda e editora prevalecesse para a publicação de Ela caiu. “Eles já tinham um público quando os conhecemos”, recorda o baterista, “e de alguma maneira eles arrastaram esse público para os restantes artistas do nosso catálogo”. “É incrível ver a quantidade de malta que já os segue e ver que é público de todas as idades”, conclui.

Mas será isto demasiada pressão para os Marquise? A aura em seu redor é aquela que foi sentida por bandas que lhes precederam na linhagem do rock portuense cantado em português. Bandas como os Ornatos Violeta, os Clã, os GNR. Bandas que são sem dúvida influências para estes quatro jovens. No caso dos Clã, além da voz feminina, há paralelos complicados de ignorar. Se MARQUISE é o LusoQualquerCoisa dos Marquise, Ela caiu é o seu Kazoo: a promessa, a revelação de uma banda virtuosa no primeiro disco, transformado no domínio das suas capacidades para entregar um segundo disco que tem tanto de maduro como de excitante.

Fotografia: Inês Aleixo

Para os Marquise, porém, nada disto assusta – até porque tentam não pensar muito no assunto. Estão cientes que tudo pode ser efémero. Enquanto gostarem de tocar em conjunto e a sua amizade florir, a música continuará a escutar-se. Até lá, definem-se como uma “banda a sério”, mas com um “espírito bastante relaxado”. Ainda sentem ansiedade antes de entrarem em palco, e muitas vezes não acreditam no seu próprio culto, mesmo quando está à frente dos seus olhos. Quando os Marquise apresentaram o seu curta-duração de estreia no Maus Hábitos, em julho de 2023, foi a primeira vez que sentiram que a sua música já não era só escutada pelos seus amigos e familiares. Havia pessoas que não conheciam de lado nenhum cientes das letras, que as cantavam com a banda. “Tínhamos perfeita noção de que nem todos os concertos iam ser assim”, esclarece Azevedo.

Porém, é em momentos como esse do Maus Hábitos ou como o vivido em março no Musicbox que a espera, a ansiedade, o caos da vida de músico vale a pena. Para os Marquise, grande parte das ansiedades, além das habituais (dinheiro, espaço para ensaio, marcar concertos, garantir condições decentes para tocar ao vivo), surgem de quando é necessário marcar ensaios. Afinal, Miguel Azevedo está a estudar em Lisboa, a 300 quilómetros dos colegas de banda, que vivem todos no Porto. É preciso trabalhar com isso em mente, mesmo que isso signifique marcar ensaios de oito horas.

“Andamos sempre à volta de como cada um de nós define as suas prioridades”, comenta o baixista. “Naturalmente, a banda também é uma prioridade porque gostamos todos de fazer isto”, acrescenta. “A música e fazer música é uma parte tão grande de cada um de nós”, indica Matias. Ainda é esse o foco dos Marquise: serem amigos que fazem música em conjunto. Tudo o resto é bónus.

São quase seis da tarde quando nos despedimos dos Marquise e da Rua da Galeria de Paris. A cidade, que a meio da tarde era habitada por pombos e turistas, tem agora portuenses a deslocarem-se rua acima em busca da entrada de metro mais próxima. Cheira a molhado, sinal que choveu miudinho algures nos últimos minutos. O céu mantém-se cinzento, a música não cessou, a cidade não parou. O Porto, por mais que o tentem mandar abaixo, continua vivo na música de bandas como os Marquise. Ainda bem que assim o é.

Os Marquise tocam na edição comemorativa dos 10 anos do FAUP Fest a decorrer no próximo dia 16 de maio. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.

Fotografia de destaque: Inês Aleixo

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Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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