O Triunfo dos Acéfalos começou como muitos outros projetos começaram. Sozinho, no seu quarto, Luís Barreto começou a experimentar fazer canções e a transformar a monotonia que encontrava em Santo Tirso numa razão para explorar o mundo.
Com o tempo, O Triunfo dos Acéfalos mudou em vários aspetos, mas o ethos do projeto pouco se alterou. Da liberdade de poder ser o que quiser, O Triunfo dos Acéfalos passou de um veículo guiado apenas por Luís para ser pilotado por este com a ajuda de Bugs Ferreira, copiloto que se juntou a Luís em 2020 e que transformou totalmente o projeto. A liberdade criativa aumentou e a veia punk de OTDA ganhou outra dimensão. Para trás, ficaram as malhas experimentais adolescentes de Luís Barreto; para a frente, a vontade destes camaradas de tentar mudar as condições materiais que os rodeiam.
Primeiro veio OX (2020), mas foi com Vivemos num Inferno (2022) que Luís e Bugs realmente ganharam notoriedade. Declaração provocatória, sem dúvida, mas longe de estar incorreta. Da Palestina ao Talude, parece impossível escapar às garras do capital exploratório. E se Vivemos num Inferno foi o episódio piloto, o novo álbum do duo corresponde à primeira temporada desta realidade tão irrealista de onde não parece que dê para escapar. Eis ERA MATÁ-LOS, excelente longa-duração publicado pela Rotten \ Fresh, uma coleção de canções perdidas entre o que é real e o que é digital, todas a arder com o combustível de uma revolução interseccional que tarda a chegar.

Antes de gritarem estas canções na Cooperativa Mula, no Barreiro, a Playback sentou-se a trocar vários dedos de conversa com o duo sobre tudo aquilo que é o universo d’O Triunfo dos Acéfalos.
Há quase dez anos, na “Quem me dera que o hip-hop português não se levasse tanto a sério”, o Luís assumiu que “OTDA é livre, é do mais puro que há”. Esta é uma máxima que ainda inspira o trabalho d’O Triunfo dos Acéfalos?
[Luís Barreto] [Risos] Eu gosto muito dessa expressão. Não tenho muito orgulho nessa música em particular, mas é uma experiência de outros tempos. Se pensares que tinha 18 anos, faz mais sentido [risos]. Mas sim, acho que isso ainda é uma coisa em que penso quando finalmente nos damos ao trabalho de gravar um disco. Divirto-me imenso e não estamos necessariamente a pensar no que queremos fazer. Fazemos só. Por exemplo, ter uma música como a “naveTRANSmãe” pode parecer pouco característico, mas para mim faz tanto sentido quanto as outras. Mas desde que o Bugs se juntou, a liberdade fluiu muito mais.
[Bugs Ferreira] Não sei como era antes…
[Luís] Era uma seca. Era abrir o Audacity, fazer o projeto de uma assentada, fechá-lo, e pôr a música no Bandcamp. Era usar a versão demo do FL Studio em que se fechasses o projeto, não podias voltar a abri-lo. É por isso que a mistura nesses primeiros lançamentos de OTDA é péssima [risos].
[Bugs] Eu senti a transição a partir do momento em que me juntei porque, inicialmente, não contribuí muito para a parte criativa. Estava mais presente na parte ao vivo a ajudar a meter os beats a dar na hora certa. Aos poucos, fui participando mais ativamente na cena e, curiosamente, foi quando começou a transição do projeto para este som mais hyperpop.
[Luís] Eu associo a “Amazónia” e a “Hair Cracker” ao Bugs. Fazer a “Hair Cracker” em particular foi uma diversão do caraças, apesar de já não a tocarmos ao vivo há bué tempo. Perdeu um bocado a graça. Mas escuta-se na “Amazónia” um fio condutor para as músicas do Bugs, como a “naveTRANSmãe”. Música ambient.
[Bugs] Deixei mais a guitarra de lado porque um gajo aprendeu a estar mais à vontade com os softwares. Também neste disco não fomos só nós a fazer tudo, como era na altura da “Amazónia”. O Gonkallo ajudou-nos imenso e isso possibilitou-nos sermos mais criativos com os sons. Ele desenmerdou imenso alguns dos nossos pedidos [risos].
[Luís] Gravamos tudo na garagem dele. Fazíamos a programação toda em casa, à nossa maneira, e é daí que resultam as nossas demos. Depois pedimos ao Gonçalo os efeitos que queríamos e ele fez isso acontecer. Ele conhece-nos bem, já nos acompanhou imenso ao vivo, e é recetivo àquilo que queremos fazer. Também percebe mais de plugins do que alguma vez eu irei perceber [risos] e teve a abertura para nos aturar. Acabou por ficar um bocado lo-fi na mesma, mas também não queremos que soe muito melhor que isto. Gostamos deste nível de thrashy e a eletrónica não pode ser clean. Isto não é suposto ser música de sunset, é suposto ter distorção e compressão.
[Bugs] De uma maneira ou de outra, fazemos as coisas acontecer. Quando não tens cão, caças com gato. [Risos]
“Foi lixado, mas conseguimos, essa é a nossa máxima”. Vocês cantam isso na “CHAT”.
[Luís] Exato [risos].
Uma das coisas que se nota logo neste ERA MATÁ-LOS face aos discos anteriores d’O Triunfo dos Acéfalos é que o Bugs está muito mais presente. Há mais voz. Não sei se essa maior inserção surgiu dessa tal maior confiança da qual ele falava…
[Bugs] Imagina, eu não gostava muito de ouvir a minha voz. Queria estar sempre em segundo plano. Depois, fui querendo fazer mais e mais porque-
[Luís] Era uma seca tocar ao vivo sem cantar.
[Bugs] Sim, também.
[Luís] Chegamos a dar uns concertos em que o Bugs não cantava ao vivo porque estava desconfortável.
[Bugs] Estava lá apenas para meter o beat a dar, escondido atrás do computador. Please do not perceive me.
Já ouço falar deste disco d’O Triunfo dos Acéfalos há algum tempo. Após declararem corretamente que “Vivemos Num Inferno!”, quando começaram a desenvolver o ERA MATÁ-LOS?
[Bugs] Nós tivemos uma abordagem um bocado diferente para este disco. No passado, passávamos tempo em conjunto a brincar com as ideias para as canções. Neste, o processo foi mais separado. Cada um fazia uma parte de uma canção e no final tentamos juntar tudo e montar, como se fosse um puzzle. Houve letras e sons que eram supostos ser para uma canção, mas acabaram a ser reutilizados em outras.
[Luís] E também tocamos imenso as canções deste disco ao vivo. Penso que mais de metade das canções? E isso permitiu-nos experimentar e ver o que funcionava ou não. Acho que foi um processo colaborativo, mas de maneira diferente. Até é um bocado estranho porque acho que nunca fomos tão-
[Bugs] Individualistas?
[Luís] Não ia dizer isso, mas de certa forma, também. Ia dizer reais, sinceros. E sei lá. Isto não foi um processo estilo Hella, em que cada um dos membros da banda fazia meio disco. Mas se calhar, isso um dia vai acontecer. Quem sabe.
Se o Vivemos num Inferno era o episódio piloto, este ERA MATÁ-LOS é tipo a primeira temporada sobre a “realidade” se ter tornado “irrealista”. E é impossível ignorar o grau de provocação do título do disco…
[Luís] [Risos] É uma frase que viaja muito no nosso léxico da Internet. Somos, obviamente, fãs convictos do Otelo Saraiva de Carvalho [risos]. E ERA MATÁ-LOS é um título ligeiramente ambíguo, tal como o nome da banda. Podem interpretar como quiserem. São coisas que são ditas por “nós” a “eles” e por “eles” a nós. A conclusão final pode ser o título deste disco, que pode ser o bom ou o final mau – depende da perspetiva. Gostava que existisse maior abertura em português para pronomes neutros porque o título podia ser ERA MATÁ-LES, mas ia soar mesmo esquisito.
[Bugs] Pensamos em outros nomes a dado ponto. Lembro-me que eu achava que ERA MATÁ-LOS era um título demasiado agressivo, e sugeri em resposta uma frase trinta vezes mais agressiva [risos]. Já nem me lembro o que era a sugestão, mas era mesmo edgy.
[Luís] Acho que a dado ponto ponderamos que o título fosse “Abaixo o Governo”, mas decidimos não seguir esse caminho porque podia-nos acontecer o que aconteceu a bandas como os Rage Against The Machine, que viram as suas canções distanciadas do seu significado original. Se ouvires a “Killing In The Name”, percebes obviamente que é sobre polícias racistas. Mas os republicanos lá nos EUA só queriam ouvir alguém a gritar “Fuck you, I won’t do what you tell me”.
Acham que há algum equivalente à “Killing In The Name” em Portugal? Alguma canção assim tão divorciada do seu significado original?
[Luís] Alguma do Sérgio Godinho ou do José Mário Branco se calhar. Aliás, é interessante pensar sobre isso. Por exemplo, a parte que mais gosto da “FMI” é quando a canção fica mesmo esquisita e experimental – a parte do spoken word. No entanto, a malta fala sempre da espécie de refrão da canção, que é uma piada. É self-aware. Nós tentamos ser um bocadinho mais assertivos que isso, mas sabemos que aquilo que fazemos pode envelhecer mal. Mas é preferível isso a algo que escreveste no passado ser cooptado e utilizado por quem não queres que utilize. O termo “Vivemos no Inferno!” se calhar é bastante vago ou demasiado abstrato para as pessoas perceberem realmente do que estamos a falar. Neste disco, temos canções como a “Elevador Social”, que manda as criptomoedas para o caralho. É mais simples. E há outra questão. Como demoramos tanto tempo a gravar o álbum, chegou a um ponto onde discutimos se as músicas iam deixar de fazer sentido. Depois, acontecia alguma coisa e ficávamos… ya, não. Fazem todo o sentido na mesma. Quando escrevemos a “FP-2025”, achávamos que aquela treta da Iniciativa Liberal de tentar colocar o 25 de novembro a valer o mesmo que o 25 de abril não ia pegar. Depois, o Governo decide que vai celebrar o 25 de novembro a sério, e com direito a parada militar.
Veem o humor presente na vossa música como uma maneira de criticar o capital ou como escape ao inferno onde vivemos?
[Bugs] Ambos. Acho que temos alturas em que, para lidar com aquilo que acontece no mundo, tem de ser assim. Estamos a brincar ou não? Será que eu disse mesmo que é para os matar? Não se deve desvalorizar coisas ao brincar com elas, mas…
[Luís] É humor. Acho que as boas piadas têm de ter algo para dizer e não ser só as clássicas piadas portuguesas em que alguém é rebaixado. Acho que nós brincamos com as coisas, mas não fugimos com o rabo à seringa. Faz parte da nossa personalidade sermos um bocado gozões.
Também é uma forma de interagir com o mundo muito influenciada pela Internet.
[Bugs] Cultura dos memes. Às vezes, parece que estás a contar uma piada, mas aquilo que estás a contar está realmente a acontecer e só podes lidar com isso rindo-te. Parece uma piada.
A realidade imposta deixou de fazer sentido?
[Luís] É tudo uma espécie de artifício imposto a partir do que nós “consumimos”. Odeio essa palavra, mas é o que é. Eu acho engraçado que nós façamos algo que pode ser visto como música de intervenção, mas que não é depressiva. Já é tudo depressivo o suficiente ao ponto de que é necessário nós fazemos isto. Mais vale divertirmo-nos um bocado.
Isso leva-me a uma questão. A música de intervenção do presente estará mais próxima do capital do que propriamente a combatê-lo?
[Luís] O que é música de intervenção nos dias de hoje, não é? Qual é a necessidade de fazeres música de intervenção se no final de contas estás só a entreter o público tipo palhacinho? Na altura, eu via o Luís Severo como uma pessoa que fazia música mais, digamos, política, mas que era “fácil” de meter a tocar em vários locais diferentes. Podias metê-lo a tocar em qualquer buraco que iam aparecer pessoas para o ver, mesmo que não o percebessem a 100%. Ainda por cima, a cena dele é uma cena mais poética. Hoje, tenho dificuldade em pensar em outros artistas que façam música de intervenção. Têm aparecido mais, mas sinto sempre que não têm nada para dizer. Lá está: não vale a pena dizer só “Fuck you, I won’t do what you tell me”. Tens de dizer algo material, algo que queiras ver de diferente.
Mas podemos pensar em alguém como A garota não, que tem muito a dizer sobre essas realidades materiais nas suas canções, mas cujo estilo de música – próximo do Zeca Afonso ou do José Mário Branco – pode não dar respostas aos desafios de hoje.
[Luís] No passado, existiu uma tradição em OTDA, ainda quando era só eu, em que cada projeto tinha sempre uma música acústica, mais folk. E depois comecei a pensar sobre o saudosismo por esse estilo de música de intervenção, muito ligada à “música tradicional portuguesa”. Nós somos de Portugal, mas somos da Internet na realidade. Geograficamente, puxamos a cena de sermos de Santo Tirso um bocado por despeito ao resto, mas é importante que o teu statement político se reflita realmente no que estás a apresentar. Ou seja, tens de romper com aquilo que te rodeia para realmente teres algo a dizer sobre o que te rodeia. No nosso caso, tentamos ir contra o rock ao não termos baterista e não funcionamos como uma banda. Chateia-me imenso todas as bandas de electropunk começarem a tocar com um baterista [risos]. Isso é conformismo.

O electroclash tem muito essa cena de ser anti-conformismo e a vossa sonoridade está não só ligada a isso, como também à cena toda da ligação entre o electroclash e a performatividade de género.
[Luís] As Le Tigre, que são uma banda que ambos curtimos bué, foram uma grande influência nesse aspeto. Foi a partir desses interesses em comum que começamos a afunilar o que era OTDA nesta direção mais específica. Representava bem o que sentíamos e o que gostamos de ouvir. Também fazemos música que queremos ouvir, não é? Não estamos a fazer isto com o objetivo de chegar a um público hipotético. A cena que dissemos à Blitz da pós-música de intervenção é uma piada, mas acho que faz sentido quando pensas que estamos a tentar romper com a ideia pré-concebida do que é música de intervenção. Se a música de intervenção é, por norma, música folk, nós vamos fazer a música mais digital e artificial possível.
[Bugs] É sinal dos tempos.
[Luís] Sim. E o nosso tempo é este.
Sentem que a cultura alternativa ainda nos pode salvar? Ou é preciso romper com as próprias estruturas que regem o circuito do underground em Portugal?
[Luís] Quando és uma pessoa trans, estás, por norma, a destruir algo que te atribuíram à nascença para criares uma identidade nova. Se calhar, essa é sempre a maneira de progredir: algo tem de ser destruído. É necessário partir ovos para fazer uma omelete. Nesse sentido, a cultura alternativa pode dar respostas se as pessoas realmente tiverem o foco de que é isso que elas querem fazer. Mas para isso, é necessário destruir alguns preconceitos e dogmas pré-estabelecidos que nos estão a puxar para trás, e não se deixar que a cultura se homo e homemgenize. É essa ideia de as bandas de electropunk se tornarem uma banda punk normal com uma bateria. Tens um sintetizador a tocar? Parabéns [risos].
Lembro-me de ler uma entrevista há uns anos dos Glockenwise em que eles diziam que apesar do fascínio pela cena musical da cidade, na realidade tudo aquilo era uma coincidência estar a acontecer porque em Barcelos não existia nenhum lugar em condições para tocar ou nenhuma contribuição direta da cidade para as bandas. Em Santo Tirso, é semelhante?
[Luís] Sim, porque à semelhança do que era Barcelos nessa altura, a cena em Santo Tirso é mesmo micro. São as mesmas cinco pessoas a rodar as bandas todas. E sempre foi assim. Não sei se o Bugs tem a mesma ideia, porque ele não é de Santo Tirso…
[Bugs] Sou da Póvoa de Varzim e fui para Santo Tirso quando me juntei com o Luís. Mas também reparo nisso desde os Psychtrus, estás a ver? Aparecia uma banda que ficava popular e depois rapidamente morria. Depois, apareciam mais duas bandas com as mesmas quatro pessoas, agora envolvidas em projetos separados.
[Luís] E uma das razões pelas quais as bandas morrem em Santo Tirso é que a cidade não quer muito saber. No final de contas, tu estás em Santo Tirso. Ou vais embora ou se ficas, vais mesmo estagnar e conformar. Um exemplo disto são os Tropa Macaca, que vieram para Lisboa logo no início e agora temos tanta coisa boa por causa deles. Eu acho que muita gente nem deve saber que eles são de Santo Tirso e nem eles provavelmente gostam de se lembrar disso [risos]. Desde miúdo que sou bué arquivista e gosto de vasculhar os confins dos blogues antigos da Internet. Uma vez, encontrei um vídeo dos Tropa Macaca a tocar em Santo Tirso e, à conversa com um amigo meu mais velho, ele disse-me que foi ele que organizou o festival onde aquele vídeo tinha sido gravado. Ou seja, foram sempre as mesmas pessoas. Em Santo Tirso, se a pessoa tem interesse, faz acontecer. E agora chegou a nossa vez e não quisemos mesmo largar o osso. Essa foi a diferença. E queremos continuar a fazer cenas acontecer em Santo Tirso à nossa maneira, mesmo que agora estejamos um pouquinho parados.
[Bugs] Não depende só de nós. Depende também dos espaços e das condições que oferecem.
[Luís] Em Santo Tirso, só tens basicamente o Carpe Diem a fazer coisas. Há outros sítios, mas não organizam nada. Volta e meia, a Câmara manda uma migalhinha aos artistas locais e deixa-lhes tocar no Centro Cultural, mas isso ocorre uma vez a cada cinco anos. O primeiro concerto de OTDA enquanto duo foi num evento da Câmara, na marcha LGBT. Não nos ajudaram com grande coisa, mas ao menos deixaram-nos fazer barulho à porta da Câmara. Volta e meia, fazemos o esforço de enviar e-mails aos jornais de Santo Tirso, mas nunca deram em nada. É um bocado uma luta perdida. Neste momento, já aceito que se eles nos derem reconhecimento, reconhecem que as nossas críticas são válidas. Se fingirem que não existimos, é mais fácil. E neste ponto, eles já ouviram falar e sabem perfeitamente quem somos. Só não querem saber.
[Bugs] Se não for uma cidade como Porto ou Lisboa, mesmo que exista o interesse em haver bandas, esse interesse acaba por morrer.
[Luís] Estas cidades, como Santo Tirso e a Póvoa de Varzim, têm pessoas com interesse em cultura alternativa. Só não encontram representatividade para elas dentro da cultura da cidade.
Mas falamos de sítios que são dormitórios?
[Bugs] Acho que não.
[Luís] Se calhar, diria que sim. Nós dormimos lá, mas tocamos sempre fora da cidade… Mas o problema, por exemplo, de fazer concertos no Carpe Diem não é a falta de gente. Há muita gente que vai ao Carpe. Só que só vai quando todos os outros sítios já fecharam. Portanto, se os concertos no Carpe fossem às três da manhã, aquilo estava cheio. Mas se fosse às três da manhã o concerto, a polícia vinha fechar aquilo.
Apesar de sentir que tanto o Vivemos num Inferno! como o ERA MATÁ-LOS têm ainda presente a cena de Santo Tirso como discurso narrativo, os discos mais antigos de OTDA têm mais presente essa ideia de escapar à monotonia da pequena-cidade.
[Luís] Eu quero que a nossa nacionalidade seja a Internet, mas não nos podes tirar da pequena cidade. Acho que isso está presente naquilo que fazemos. Há uma fúria específica. O Ricardo Mariano no outro dia disse que tínhamos uma raiva adolescente, e eu acho isso hilariante porque estamos quase nos trinta. Mas eu percebo porque ele disse isso.
Sobre estas cidades mais pequenas, sentem que vivemos num momento onde estes sítios são assombrados, em simultâneo, pela ideia de um romantismo que nunca existiu, associado à nostalgia, e pela glorificação da ideia de serem locais habitados por acéfalos?
[Luís] A glorificação do pacóvio, não é? Ai! Ele tem uma vida tão simples.
[Bugs] Ele não pensa em nada, não tem de se preocupar com nada!
[Luís] Em Santo Tirso, é tudo igual a uma grande cidade com uma diferença: existem menos carros. Todos os problemas que existem no resto do país, existem em Santo Tirso. Digo isto porque conheço Santo Tirso, mas acredito que sejam todas assim.
[Bugs] Na Póvoa de Varzim é igual.
[Luís] Às vezes, o pessoal manda-me memes porque são piadas onde Santo Tirso está a ser usado como exemplo de buraco. E tipo: why are catching strays? Não é assim tão mau. É normalmente mau, como Portugal. É um nível adequado de péssimo. Eu acho.
Não sou a favor da ideia de que o aborrecimento cria bandas. Nem sempre é verdade. Até porque para existirem bandas, têm de existir sítios comunitários onde dê para fazer barulho. E desses, existem cada vez menos.
[Luís] Eu não teria feito uma banda se não existissem bandas em Santo Tirso para eu dizer que eram uma merda. Quando tinha 18 anos, achava que era o rei disto tudo. Atualmente, gostava que houvesse mais pessoas a fazer bandas em Santo Tirso, mas realmente, não há. Lembro-me que levamos os 800 Gondomar a Santo Tirso e apareceram miúdos que nunca tinha visto na vida. Todos super jovens e entusiasmados porque iam ver os 800 Gondomar. Nós falamos com eles e dissemos que podiam vir aos outros eventos que organizamos e eles não mostraram muito interesse. Houve uma altura em que eu e uns amigos – o pessoal de tédio fc – organizamos concertos no Carpe Diem com bandas de todo o país e algumas estrangeiras. E os jovens de Santo Tirso só apareciam nos concertos das bandas que conheciam. Ou seja, em Reis da República e Ganso estava cheio, mas depois em Gator, The Alligator ou Noyades, que era uma banda francesa incrível, estava vazio.
Ao jornal i, disseram no passado que era complicado porem o pé na porta para terem mais concertos. Porém, nos dois últimos anos, isso claramente mudou e tocaram muito mais do que anteriormente. Sentem que agora OTDA faz parte de alguma cena musical graças a isso?
[Luís] O que levou a essa mudança foi a nossa insistência e não aceitarmos o não como resposta. Esse é o conselho que posso dar ao pessoal. Mandem e-mails e se não responderem, mandem mais e-mails. Um buraco para tocar arranjam sempre. Lembro-me que no ano antes de sair o Vivemos num Inferno!, demos para aí cinco ou seis concertos, e todos foram de graça – não recebemos nada. Mas não estamos a fazer isto pelo dinheiro, não é? Nem tudo o que fazes com cultura tem de ser para te ajudar a pagar a renda. Não é passar recibos verdes que te faz profissional de alguma coisa. Quando começamos a dar montes de concertos, eu estava a trabalhar num armazém às seis da manhã.
[Bugs] E eu numa pizzaria.
[Luís] Marcamos os dias para ir dar concertos. A malta às vezes romantiza as bandas americanas e tal, mas elas estão cheias de malta que trabalha constantemente em trabalhos de merda e despede-se quando é para ir tocar. A máquina deles rola assim. O sonho é existir um sindicato de músicos independentes.
[Bugs] E existir mais ligações entre os coletivos e as associações que existem. Depois, também há a questão da expectativa. Há malta que começa uma banda e acha que vai logo rodar tudo de uma vez e vai-lhes acontecer tudo. Não. Isso não acontece. Cada coisa a seu tempo. Começas bué DIY e vais estabelecendo as tuas condições. Ao início, para nós, foi assim. E sabemos que para nós, até teoricamente foi mais fácil porque somos só dois. Se fôssemos uma banda com quatro ou cinco pessoas, não teríamos metade das datas que arranjamos.
[Luís] Sim. Mas sobre a questão da cena musical, acho que OTDA existe num limbo interessante. Ou seja, depende de onde tocamos e do público que encontramos. Se formos tocar numa cena mais rock, sei que serão concertos onde a guitarra e a voz vão estar bué altas. Quando tocamos em cenas de música eletrónica ou experimental, geralmente o concerto soa como eu quero [risos]. Só que tocamos muitas vezes nas cenas de rock porque é o que tem mais representatividade. É normal. Mas lá está: é no final desses concertos que nos vêm chatear para arranjarmos um baterista.
Pouco tempo depois de lançarem o Vivemos num Inferno!, vocês tentaram profissionalizar O Triunfo dos Acéfalos. Lembra-me que chegaram até à Leitura Tropical, uma agência que tinha a Sallim e o Éme e que, entretanto, acabou.
[Luís] Morreu a Leitura Tropical e voltamos ao que estávamos a fazer antes. Estávamos à espera de um ano em cheio, mas à pala do fim da Leitura Tropical, tivemos um ano a gravar disco à base da subsidiodependência [risos].
[Bugs] Obrigada IEFP. [Risos]
Onde surge aqui a Rotten \ Fresh?
[Luís] Nunca estivemos opostos a estar numa editora desde que fosse algo com que nos identificássemos totalmente. Se ninguém nos desse a mão, tínhamos feito as cenas pelo nosso próprio meio. O problema aqui é que sempre que tocamos em eventos relacionados com alguma editora, diziam-nos que gostavam de lançar alguma coisa nossa, mas ficava por aí. Era só isso que tinham para dizer. O Diogo, porém, veio ter connosco depois de um concerto em Lisboa e mostrou iniciativa. Começou a perguntar-nos em que formato queríamos editar e fez-nos uma proposta. Isso ficou no ar, mas quando acabamos o disco, mandamos-lhe mensagem a perguntar se ele se lembrava da oferta e fizemos isso acontecer. O Diogo vende-nos como a banda de rock da Rotten \ Fresh, que é hilariante. Mas aceito.
O mote deste disco é “Temos tanto para falar, não vás à Internet”. Nos últimos anos, tem-se discutido muito sobre como a Internet se transformou deste local onde as possibilidades pareciam infinitas num sítio onde o capitalismo de vigilância reina. Porém, sinto que a Internet, quando “corre bem”, continua a ter o potencial de ser uma ferramenta para nos descobrirmos a nós mesmos, e sinto que esse sentimento é algo que sobressai na vossa música.
[Bugs] Sem dúvida.
[Luís] Eu não tive aquela experiência formativa de ter um irmão ou primo que me mostrassem música da qual eu gostasse. Eles tinham gostos limitados. Portanto, tinha de descobrir música por mim próprio. E como eu fiz isso? Com a ajuda do 4chan. Pelo meio dos insultos, a malta falava de música e essas conversas levaram-me a descobrir música que os meus irmãos nunca me teriam mostrado nem que os meus colegas de Santo Tirso conheciam. Lembro-me de mostrar a amigos o King Krule quando ele se chamava Zoo Kid e ignorarem-me. Algum tempo mais tarde, ele apareceu no Ípsilon – já como King Krule – e vieram perguntar-me se já o tinha ouvido. “Sim, eu mostrei-te o gajo, mas tu não quiseste saber”. E eu e o Bugs conhecemo-nos por causa da Internet. Tínhamos gostos semelhantes porque vasculhamos a Internet à procura de qualquer coisa que nos fizesse sentir alguma coisa face ao que nos era mostrado no dia-a-dia.
[Bugs] Eu descobri Machine Girl e The Hellp nos círculos do Reddit. E cada vez que descobria um novo artista, abria-se uma panóplia de portas para descobrir mais coisas.
[Luís] Uma banda muito importante nesse aspeto, para mim, foram os Death Grips. A partir de Death Grips, cheguei ao Zack Hill. Com o Zack Hill, ouves Hella. Ouves Hella, ouves Team Sleep. Com Team Sleep, chegas aos Deftones.
[Bugs] Ouvias uma banda e ias ver quem tocava e ias ouvir os outros projetos.
[Luís] Ouves Animal Collective e vais cuscar cenas como Ariel Pink – que não ouço atualmente, há que referir –, John Maus, etc. Nesse sentido, a Internet foi incrível. Ter conhecido o Bugs foi incrível, até porque a história é engraçada. O Bugs não tinha fotos nem nada na Internet. Era anónimo. E eu criei uma ligação forte com uma pessoa que não fazia a mínima quem era e que nunca tinha visto na vida. Eu tenho montes de amizades e montes de experiências com pessoas online que eu não faço ideia quem são. Mas a Internet, com essa tentativa de anonimato infinito, abre-te portas. Se fores uma pessoa trans, se calhar podes criar um avatar online para seres a pessoa que não podes ser na tua vida real. Mas isto tanto pode funcionar para o bem como para o mal. Porque depois tens estes grifters todos que são os reis do fascismo.
[Bugs] Não sei se a Internet morreu, mas agora está-
[Luís] A ser usurpada.
[Bugs] Tens algoritmos pensados de maneira a oferecer-te o que tu queres ver e não para te estimularem a explorar, estás a ver? Eu já desisti um bocado da Internet.
[Luís] Eu já tinha muitos problemas com o Spotify ainda antes de descobrir-se que o Spotify patrocinava empresas de armas. Porque às vezes vinham ter comigo a dizer que o Spotify lhes tinha sugerido uma banda e eu ficava: meu, estás a deixar que um robot te diga o que te ouvir? Pesquisa tu próprio. Clica na etiqueta do género no Bandcamp e vai descobrir alguma coisa nova. Se não, estás só a ouvir coisas pré-formatadas.
[Bugs] E agora há bué bandas cuja música é toda feita por inteligência artificial, que é toda outra panóplia de coisas…

“Chat, isto é real?”
[Luís] Nada é real. Tal como Portugal, gostamos de muita coisa na Internet, mas há outras tantas que odiamos profundamente. Eu odeio que tenhas de fazer milhões de publicações todos os dias se queres garantir uma breve esperança de as pessoas verem que vais tocar perto delas para decidirem se vão ao teu concerto ou ao concerto de outra banda.
Ultimamente, tenho assistido a alguma malta a falar com saudades dos eventos do Facebook porque tinhas noção mais ou menos de quantas pessoas iam aparecer num evento teu.
[Luís] Eu fiz a adolescência nos grupos e eventos do Facebook. Era bem fixe.
[Bugs] Ainda existia um sentido de comunidade. Agora…
Vivemos numa realidade fragmentada alimentada pelas redes sociais?
[Luís] Acho que sim. Sinto que estamos constantemente num processo de migração de sítio para sítio no mundo digital. Já não apanhei o MySpace, mas lembro-me do Hi5. Depois a malta foi para o Facebook, depois para o Instagram, e agora para o TikTok. O TikTok é tudo aquilo que tu achas mais irritante no planeta, mas volta e meia uma música fica viral e tu achas que isso pode acontecer a ti. Não vai acontecer.
O que é suposto uma banda do underground em Portugal procurar? A viralidade no TikTok? Não me parece.
[Luís] Exato. Acho que o pessoal também muitas vezes está à procura de um saudosismo por algo que nunca existiu. Por exemplo, tocar num grande festival, em Portugal, não é fixe. Eles não querem saber de ti. Nós não temos a ambição de tocar num grande festival. Para nós, o objetivo seria tocar num Bons Sons ou no ZigurFest, onde já tocamos.
[Bugs] Ou no Barreiro Rocks, que agora voltou.
[Luís] Também. Esses são os festivais onde as pessoas querem saber minimamente da tua música. Nos festivais grandes, isso não acontece. É o festival da Vodafone, da MEO. Mas também é curioso. Em Portugal, sempre que vais tocar e és pago aquilo que mereces, estás a fazer publicidade a cerveja ou, mais recentemente, também a casinos de jogos online – que é uma coisa que odiamos. A “Elevador Social” é sobre isso. E isso está em todo o lado, não consegues fugir. Como é que tocas no Bacana Play e sentes-te bem contigo mesmo? Eu cometia autoimolação em cima do palco [risos]. Se me convidassem para tocar num festival grande, tinha de garantir que destruía a minha carreira. Não me importo de trabalhar a lavar pratos o resto da minha vida desde que faça o meu statement. Isso também importa.
[Bugs] Mas o que é um statement hoje? Dá sempre para capitalizar com isso também.
[Luís] Como diz no Disco Elysium, o capital tem a capacidade de absorver as suas críticas e representá-las.
Isso volta à questão que começou esta parte da conversa. Até que ponto neste momento a cultura alternativa não se tornou a representação perfeita disso que acabaste de dizer? Se estás a replicar as mesmas estruturas fascistas do capital num mundo onde deveria reinar a solidariedade, de que vale a pena existir uma “alternativa”?
[Luís] Isso lembra-me uma história. Tocamos num evento de banda desenhada uma vez onde estava a ocorrer um painel que envolveu uma discussão sobre percentagens divididas entre autores e editoras e culminou em algo do género: “Mas estamos a falar de zines e estamos aqui a falar de percentagens? Que capitalismo é este?” Toda a gente riu muito, mas a discussão era também necessária. Tens de garantir que a malta com quem trabalhas recolhe algum benefício em vez de ser só fazeres coisas e mandar para o vazio à espera que ocorra algo.
Mas há uma diferença entre discutir isso e seres um programador que te oferece um cachê irrisório ou condições péssimas, quando tem capital disponível, só porque vai-te deixar tocar na sala x com reputação.
[Luís] Mas isso tem também a ver com a manutenção de estruturas lideradas pelos mesmos de sempre. Às vezes dizem-nos que temos de impressionar o gajo y e ter cuidado com o que dizemos em palco. Mano, eu vou dizer o que me apetecer. Se não porque haveria de estar a tocar sequer? Eu quero criar o meu próprio espaço e não quero estar dependente de impressionar outras pessoas para conseguir isso. Isso nem devia sequer ser uma necessidade. Só tenho de me impressionar a mim próprio e fazer a música que quero e sentir que estou a evoluir. No mundo da Internet, ficar três anos sem lançarmos nada, como ficamos depois do Vivemos num Inferno!, seria suicídio. E fizemos imenso nestes três anos. Conhecemos Portugal, tocamos em buracos. Tivemos pontos altos e pontos baixos e foi sempre fixe porque estávamos a fazer alguma coisa. Isso é que importa.
À Blitz, falaram da necessidade dos vossos concertos serem espaços seguros para pessoas queer e marginalizadas. O underground em Portugal é um espaço seguro para essas comunidades?
[Bugs] Não. É um circuito dominado por gajos hétero, cisgénero e brancos que acham que são quase políticos nas suas letras. Isso diz muito.
[Luís] Penso muito no exemplo de bbb hairdryer. Quando a Elisa diz “queers to the front, girls to the front”, eu percebo. Ela tem razão. No entanto, como eles estão de costas, não vêm o que acontece nos seus concertos. Porque o pedido não é aceite pelo público. A cultura do moshpit está muito pouco recetiva hoje. Mesmo com MONCHMONCH, com quem também toco, ele faz o discurso e tenta bué que o pessoal não se magoe e que seja fofo. Mas a malta não quer ouvir isso. Querem é rebentar com tudo e libertar as suas frustrações.
[Bugs] Nada disso é saudável.
[Luís] Nós queremos que a malta se divirta nos nossos concertos e longe de mim ser anti-mosh. Eu participo muitas vezes, mas há momentos e momentos.
[Bugs] Nós fazemos música para pessoas trans porque somos pessoas trans, sabes? Tentamos garantir que passamos a mensagem de que se essas pessoas estiverem no nosso concerto, podem fazer parte disto. Apesar de existir malta queer no underground a fazer música, ainda são poucos. Temos de fazer por criar esses espaços também. Se não estivéssemos nós aqui, iria ser mais do mesmo: os mesmos gajos brancos de sempre a gerir os espaços. Temos de mudar isso.
2026 vai ser um ano de muitos concertos para O Triunfo dos Acéfalos?
[Luís] Esperemos que sim. Já estamos a começar a encher a agenda aos poucos. Por acaso, temos sentido que houve muitas salas que nos abordaram depois do disco sair porque estavam à espera de haver um pretexto para regressarmos [risos]. Com o disco e as músicas novas, podemos – mesmo que seja quase o mesmo set [risos].
O Triunfo dos Acéfalos apresenta ERA MATÁ-LOS nas Damas, em Lisboa, neste sábado (20). Os bilhetes podem ser comprados à porta.
Fotografia de destaque: Ana Oliveira
