Este fevereiro faz 20 anos que Gomo lançou “Feeling Alive” e Best Of. Mas quem é o Gomo? 

Nos últimos dias, quando comentei com amigos esta peça, essa foi a pergunta que mais ouvi. A minha resposta? Cantarolar imediatamente a melodia de “Feeling Alive”, single que ajudou a tornar Gomo, em meados dos anos 2000, numa das maiores referências da pop portuguesa. Todos a reconheceram imediatamente. Se a memória de quem é o Gomo se evaporou do imaginário, “Feeling Alive” não. Tornou-se parte da memória coletiva de uma geração inteira e cimentou Gomo como o último one-hit wonder da pop portuguesa.

Tenho há anos uma enorme curiosidade por saber mais sobre o percurso de Paulo Gouveia. É ele o músico que assina como Gomo. Com o aproximar do vigésimo aniversário do single e do disco, pareceu-me a altura certa para tirar as minhas dúvidas. Portanto, liguei ao Paulo para conversarmos sobre o seu trajeto enquanto Gomo. O início, coincidências e sorte, um hit, e as razões que o levaram a afastar-se da música por mais de uma década.

Antes do hit

Paulo Gouveia nasceu em Lisboa em 1971, mas é em Santarém onde passa grande parte da sua infância e adolescência. É em Santarém onde começa a história musical de Paulo, quando ingressa no ensino musical, embora tenha desistido por “achar entediante”, revelou ao semanário O Mirante em 2009. Paulo nunca aprenderia teoria musical – diz que ainda hoje não sabe tocar uma única nota (guardem esta informação – vai ser importante). Contudo, à velha maneira punk, isso não o impediu de tentar ser músico. No início da década de 90, o seu irmão mais velho, a viver em Lisboa, era vocalista de uma banda chamada Fragmentos – até deixar de o ser. O seu sucessor? O seu irmão mais novo – Paulo. 

É a ser frontman dos Fragmentos que Paulo encontra a sua vocação musical. “Achei muita graça em ser vocalista e queria continuar”, revela. Quando vai estudar Design Industrial na Escola Superior de Tecnologia, Gestão, Arte e Design das Caldas da Rainha, os Fragmentos terminam. Porém, nas Caldas, o cenário era um de efervescência criativa. Os meados da década de 90 foram uma espécie de anos de ouros para o underground caldense, com várias bandas alternativas a conquistarem hype, tanto localmente, como algumas até nacionalmente. Uma dessas bandas eram os Orange, dos quais Paulo era o vocalista.

“Tive sorte de como surgiram os Orange”, conta Paulo. “Dois membros dos Orange zangaram-se com os elementos da sua banda anterior e queriam começar um projeto novo. Como eu já andava a tentar arranjar um projeto onde cantar, resolveram experimentar comigo e resultou”, acrescenta.

Os Orange nunca lançaram propriamente um disco – as suas faixas estão espalhadas por compilações do final da década de 90 –, mas os seus concertos ao vivo e maquetas deram algum furor à banda. A nível de sonoridade, talvez a comparação mais próxima para os Orange seriam os Placebo. Os Orange, tal como os britânicos de Brian Molko, combinavam dissonância ruidosa e afinações pouco ortodoxas com alguma sensibilidade pop, e tinham as emoções constantemente à flor-da-pele. Soavam como uma banda sempre prestes a implodir. E foi mesmo isso que aconteceu. Apesar do sururu em torno da banda, tensões entre os membros e discordâncias em torno da direção criativa da banda levaram a que os Orange encerrassem atividade. Estávamos no final da década de 90.

GOMO por Carlos Barroso
Fotografia: Carlos Barroso

A refletir sobre o porquê dos Orange terem terminado, Paulo conta que estar na banda tornou-se “insuportável” por várias razões. Primeiro, as zangas que existiam dentro do grupo (Paulo brinca como tendo sido previstas na belíssima “Strange Relationship”). Segundo, o volume dos ensaios levava Paulo a forçar a sua voz porque precisava de “estar sempre a cantar o mais alto possível” para se conseguir ouvir (a consequência disto é que os Orange soavam algo emo). Por último, a sua opinião tinha muito pouco peso nas decisões criativas da banda. Se Paulo tinha o desejo de explorar algo mais melódico, mais próximo das suas referências de Britpop, os seus colegas de banda tinham a tendência para levar as canções para sítios pouco ortodoxos, ao bom estilo de Sonic Youth e Dinosaur Jr.

O término dos Orange deu vontade a Paulo de explorar o “que via que podia fazer em Orange, mas que não conseguia”. É dessa vontade que surge o projeto de Gomo. Contudo, apesar da vontade de fazer novas canções, Paulo demora um ano a meter mãos na massa. Razão? Levou esse ano a construir o seu estúdio num terreno oferecido pelo seu sogro. Ao fim de um ano, ficou com um local com “todas as condições para fazer música”. É nesse estúdio onde, a partir da fragmentação dos Orange, nasce Gomo.

“O início de Gomo acontece porque os meus amigos vinham ao estúdio no final do dia de trabalho para conversar e tocar”, indica Paulo. “Quando estava nos Orange, ganhei a mania de ter sempre a mesa de mistura a gravar. Então, gravava essas conversas e tudo o que fazíamos com os instrumentos que tínhamos à disposição.”, conta. “No dia a seguir, ouvia as gravações, extraía loops que achava interessantes, somava as minhas ideias por cima, e depois mostrava-lhes o resultado final à noite”, relembra.

Estas brincadeiras são a base das canções de Gomo e a primeira pista de um ethos que se vai revelar adiante: as canções de Paulo não são criadas como outras canções pop. Surgem a partir de loops que Paulo manipulou com a ajuda do Pro Tools. É assim que aparecem as primeiras canções incluídas na maqueta de estreia de Gomo – “Proud To Be Bald” e “You Might Ask”. É essa a maqueta que Paulo envia a três radialistas: António Sérgio, na altura na Rádio Comercial, e a Nuno Calado e Henrique Amaro (anteriormente um dos principais divulgadores da música dos Orange), ambos da Antena 3.

De acordo com Paulo, o que se segue é inesperado e fruto de um acaso. A maqueta é enviada identificada apenas com “Gomo” escrito de forma estilizada; por outras palavras, a maqueta é enviada sem um autor identificado. Mas mesmo sem se saber quem era a pessoa por trás de Gomo, as suas canções ganham fãs no universo da rádio portuguesa e, por fim, na imprensa escrita. No Diário de Notícias, Nuno Galopim dá início a uma espécie de “caça ao Gomo” visando descobrir quem é o Gomo. Porém, ninguém se assume – e havia razão para isso. Imediatamente a seguir a ter enviado a maquete, a tia de Paulo faleceu e este teve de se ausentar algumas semanas de Lisboa para tratar do velório e das partilhas. É durante esse período que a sua maqueta, sem este saber, ganha furor. Corriam os primeiros meses de 2001. Durante o ano seguinte, a vida de Paulo sofreria a primeira transformação. Passou de ilustre desconhecido a ter um contrato com uma major – a Universal Music Portugal.

O hit

A história de como Paulo assina com uma major e surge “Feeling Alive” é resultado de sucessivas e felizes coincidências. Aquilo que acontece entre o furor com a primeira maqueta e o dia em que assina contrato com a Universal é digno de um filme – o próprio Paulo continua incrédulo até hoje com o que aconteceu.

A “caça ao Gomo” termina quando Paulo decide ir a uma das conferências do Super Bock Super Rock, em meados de 2001. Num painel moderado por Henrique Amaro, Paulo decide fazer uma pergunta aos convidados. Quando o faz, Henrique Amaro, ao reconhecê-lo dos seus tempos nos Orange, pede para este se apresentar. Porém, quando Paulo se apresenta, efetua uma correção. Os Orange já não existem e agora assina como Gomo. Para choque dos presentes, o ex-vocalista dos Orange revelava-se como a cara por trás do projeto português mais excitante de 2001.

A partir daqui, a história escreve-se da seguinte forma: o Gomo toca em vários festivais de verão portugueses, é convidado para compor um tema de Natal por Henrique Amaro – daí resulta a deslumbrante e tristonha “Santa’s Depression” – para apresentar aos ouvintes do programa Rádio Clube, e vê um dos seus temas chegar ao primeiro lugar do top da Antena 3. Quando Paula Homem, A&R na altura na Universal Music Portugal, demonstra interesse em assinar com Paulo, já o projeto de Gomo é cobiçado e reconhecido no seio musical português. No mesmo dia em que Paulo Gouveia assina com a Universal, em 2002, também Ana Moura o faz (de acordo com Paulo, existe uma versão de “Feeling Alive” com Ana Moura que nunca foi lançada).

Mas até “Feeling Alive” e Best Of verem a luz do dia em 2004 foi necessário montar as restantes peças do puzzle para o álbum. Primeiro, quem iria ser o produtor? Um tal de Mário Barreiros, responsável por discos de artistas como Pedro Abrunhosa, Clã, Ornatos Violeta ou Silence 4. Nome (e nomes) de peso, portanto.

“A produção do disco custou todo o dinheiro que tinha”, revela Paulo. “Fui para o Porto gravar com o Mário e não tinha dinheiro nem para gasolina, nem para um hotel”, conta. “Andei a dormir no carro até que o Mário percebeu o que estava a acontecer e convidou-me para dormir em casa dele. Em troca, tentei ser a melhor pessoa para com ele e a família e ajudá-los com o que pudesse”, confessa.

Capa de Best Of
Capa de Best Of

Apesar da cumplicidade que se desenvolveu entre ambos, as diferenças na linguagem pop de Mário e de Paulo veio ao de cima ao início. O produtor desejava regravar praticamente todas as maquetas de Paulo, mas acabou por desistir da ideia. “Um dia, o Mário ligou-me e disse que íamos simplesmente trabalhar por cima das maquetas porque não era possível replicar a sua essência”, revela Paulo. “O que ouvimos no Best Of são as maquetas iniciais, mas com algumas coisas regravadas e trabalhadas por cima”, acrescenta.

Não fugir muito à base das maquetas permitiu que as canções de Best Of parecessem caseiras, mesmo que tenham por detrás produção relativamente profissional. Assim sendo, não perdem nenhuma da sua essência: canções pop estupidamente divertidas, muitas delas a roçar entre serem genuinamente ridículas ou verdadeiramente originais (a resposta é a segunda). Este é o primeiro fator para a eficácia pop de “Feeling Alive”. A canção é totalmente despretensiosa e soa a puro êxtase, sendo toda ela preenchida por melodias e hooks muito complicados de esquecer após serem ouvidos (além do teledisco icónico).

Quando penso em “Feeling Alive”, a primeira coisa que me vem à cabeça é *aquela* vozinha. De onde veio? Porque é que está ali? Pior – porque é que me ficou sempre na cabeça desde que a ouvi, se a memória não me falha, num Top+ quando era criança?

Até bem recentemente, Paulo não se lembrava de como surgiu “Feeling Alive”. Confessa ser uma pessoa que se “esquece muito rapidamente das coisas” e que foi Manuel Simões, guitarrista ao vivo de Gomo e amigo de longa data, que lhe relembrou de como a malha foi concebida: de um acaso.

Conta Paulo Gouveia: “O Pro Tools tinha uma função em que se clicasses na barra de espaços para começar a gravar, aquilo gravava com uma velocidade diferente.” Certo dia, Paulo clica sem querer na barra de espaços enquanto gravava outra canção do disco – “I Wonder” e achou muita “graça” a essa gravação. É essa gravação que dá origem a “Feeling Alive”. Portanto, aquela vozinha estilo Alvin e os Esquilos? É apenas um erro de gravação de “I Wonder” que acabou a tornar-se num hook instantâneo. É uma das duas imagens de marca da canção – a outra é o teledisco, realizado por Rui de Brito.

Apesar de conhecermos hoje Rui de Brito como realizador, no início da década de 90 este foi… colega de Paulo Gouveia nos Fragmentos. Rui é uma importante peça de como “Feeling Alive” se tornou um êxito. Não só pelo teledisco que realizou, mas também por ser ele que convence Paulo que “Feeling Alive” devia ser o primeiro single de Best Of – por essa altura, já a Universal tem tudo fechado para o primeiro single ser “I Wonder”. Porém, Rui acha que “Feeling Alive” é a melhor representação da essência musical de Paulo e pede-lhe para ser ele a fazer o teledisco. Às escondidas, Paulo e Rui concebem o vídeo de “Feeling Alive”. Apesar disso, devido a problemas de logística de última hora, o conceito original não pode ser concretizado. Mas por essa altura, já se encontra tudo a postos para que o teledisco seja gravado na casa da sua namorada na Bobadela. Por outras palavras: era preciso uma ideia nova para salvar a coisa. É essa ideia que dá origem ao vídeo de “Feeling Alive”.

“A ideia original para o teledisco envolvia vários convidados que, até ao último dia, roeram a corda se iam aparecer ou não. Como já tínhamos tudo pronto para filmar, fomos postos numa situação complicada.”, recorda Paulo. É através de um telefonema que Rui de Brito apresenta a Paulo a ideia que dá origem ao teledisco de “Feeling Alive.” “O Rui liga-me e diz-me que estava a olhar para a lista de coisas que tinha de fazer e ocorreu-lhe: porque não fazer um vídeo que é um guia para toda a gente de como fazer um vídeo?”

O teledisco de “Feeling Alive”, com o seu fake DIY, é icónico, mas não só. Traz ao de cima uma ideia inconsciente do projeto de Gomo: tudo isto é pop, mas a linguagem pop do Gomo é simulada. É meta. À primeira vista, tudo parece pensado; na realidade, tudo é fruto de coincidências e loops lo-fi inspirados. Nada é concebido como o que era suposto, mas o resultado são canções orelhudas e absurdistas. “Be Careful With The Train”, com os seus sons de órgão a brilharem, é um excelente exemplo disso.

Com a ajuda do teledisco, Paulo conseguiu convencer a Universal de que “Feeling Alive” devia ser o primeiro single de Best Of. As estrelas alinharam-se – tornou-se um hit. Lançado em fevereiro de 2004, o single rodou em tudo o que era sítio para rodar. Nas rádios, ao ponto de se tornar irritante. Na televisão, o teledisco rodou regularmente no Sol Música, na MTV Portugal – que tinha chegado a Portugal em 2003 – no VH1 e no Top+. Ainda antes de 2004 terminar, o Gomo é nomeado para Best Portuguese Act nos prémios da MTV. Vencem os Da Weasel. Mas a relação do Gomo com a MTV não termina aqui.

Depois do hit

A receção da crítica a Best Of foi muito positiva. O Gomo foi capa do suplemento cultural do Diário de Notícias, do Blitz e do Y (que o apelida de “Beck português”), com este último a nomear o álbum como o 9º melhor disco nacional do ano e a chamá-lo “música pop naquilo que ela tem de mais reconfortante. Evocar e reconstruir sentimentos complexos em três frases musicais eficientes.”

Entretanto, além-fronteiras, algo acontece: “Feeling Alive” começa a encontrar rotação por várias MTVs mundo fora. Como isso aconteceu, conta Paulo, é uma história caricata – como todas as outras que levaram ao sucesso do Gomo.

Em meados de 2004, ocorre em Portugal uma conferência da MTV com os programadores de cada filial do canal norte-americano. Conforme conta Paulo, nessa conferência ia acontecer uma sessão onde cada programador teria de mostrar três telediscos de artistas do seu país. O programador musical da MTV Portugal na altura, João Ruas, era amigo dos The Gift que, por sua vez, eram amigos de Paulo (Paulo acompanhou os The Gift ao SXSW em 2002 como roadie). Portanto, Paulo tinha uma missão: mostrar o teledisco de “Feeling Alive” aos programadores. Um entrave: os telediscos já tinham sido escolhidos quando Paulo pede a João para incluir o teledisco de “Feeling Alive”. Mas João deixa uma promessa a Paulo: quando a sessão terminar, colocará o teledisco a dar no ecrã como se tratasse de “música de fundo”. Resultado? Os programadores acabam por ficar interessados em “Feeling Alive,” que assim, juntamente com “Touch Me” de Rui da Silva e “Ok! Do You Want Something Simple?” dos The Gift, torna-se num dos primeiros telediscos portugueses a passar na MTV Internacional.

Capa de Blitz de Gomo. Cortesia de Henrique Amaro
Capa de Blitz de Gomo. Cortesia de Henrique Amaro
Capa do Y com Gomo. Cortesia de Henrique Amaro
Capa do Y com Gomo. Cortesia de Henrique Amaro

“Feeling Alive” passar na MTV foi o clímax para a “sorte” de Paulo Gouveia. Mas a sorte um dia acaba. E para Paulo, o que se seguiria seria o início do fim para o sucesso de Gomo. Primeiro, houve um convite aliciante que acabou por não dar em nada: é convidado para ir a Roma pelo presidente da Interscope, que estava interessado em editar Best Of internacionalmente. Contudo, a escolha é entre o Gomo e outro artista – um tal de MIKA. O autor de sucessos como “Grace Kelly” ou “Relax, Take It Easy” é o escolhido. Depois, os Estados Unidos. Ali, tocou em salas como o Viper Room ou o Mercury Lounge, e chegou mesmo a receber uma proposta para “Feeling Alive” ser utilizada num spot publicitário para o iPod Nano; nunca chega a ir para o ar. Corria o ano de 2005.

Desolado no seu regresso a Portugal, só em 2009 o sucessor de Best Of viria ao mundo. No entanto, entre discos, Paulo manteve-se ocupado com outras aventuras, umas mais musicais, outras menos. Se virem com atenção o teledisco de “Poetas de Karaoke” – realizado por Rui de Brito –, Paulo surge sentado no lugar do condutor num sketch do vídeo. Além disso, passou algum tempo a trabalhar numa agência de publicidade, onde ajudou a delinear as ideias base daquilo que seria a Vodafone FM (atualmente, Batida FM), compôs o hino da Antena 1 de apoio à seleção nacional no Mundial de 2006 (“Eu Quero Ver Portugal Vencer”), o tema do Verão de 2007 da Antena 3 (“Heat de Verão”, com letra de Sérgio Godinho) e o tema oficial da campanha de lançamento da EDP Renováveis (“Spin Me Around”), e fez uma mini-carreira no mundo do cinema. Deu voz à personagem do Bode no filme Capuchinho Vermelho: A Verdadeira História – onde contribuiu com pelo menos duas canções para a banda sonora da longa-metragem – e cantou o genérico da versão portuguesa do filme O Panda do Kung Fu (debatível se o teledisco seria aprovado em 2024).

Entretanto, “Feeling Alive” fica inscrito na memória coletiva de uma geração. Além do impacto do teledisco, a canção ganha notoriedade extra após ter sido utilizada na banda sonora de séries como Uma Aventura ou telenovelas como Perfeito Coração e em múltiplas campanhas publicitárias de grandes marcas: Caixa Geral de Depósitos, Vodafone, e Corpos Danone. Contudo, quando Nosy é lançado em 2009, o Y já pergunta: “Quem já se esqueceu do Gomo?

Quatro anos, normalmente, não é muito tempo. Todavia, em tempo pop, quatro anos é imenso. Quiçá, demasiado.

Capa de Nosy
Capa de Nosy

Quando Nosy é editado pela EMI em 2009 – entre discos, a Universal cortou ligação com Paulo devido a um rumor de que este iria fechar contrato com a Sony –, já o público tinha deixado Gomo algo para trás. Além disso, a própria perceção do artista perante o mundo da música tinha-se alterado radicalmente. Se as canções de Best Of eram marcadas por uma felicidade quase infantil, as canções de Nosy não obedecem a esse dogma (há diversão, mas não deixa de ser cínica – o impacto da crise financeira de 2008 já se fazia sentir). Em Nosy, Gomo lida com a sua ansiedade, o seu insucesso e as suas inseguranças. Em vez de esperança pop, existe desalento pop. Havia razão para isso. “A cabeça já não estava lá”, indica Paulo.

No entanto, o ciclo de Nosy conta com momentos de relevo. Gomo regressa ao Sudoeste em 2009 (durante a conversa, Paulo relembra que Luís Montez, dono da Música no Coração, sempre apoiou muito o projeto) e, no mesmo ano ainda, faz a primeira parte de Katy Perry no Campo Pequeno (digressão do Teenage Dream!!) e dos Depeche Mode no Pavilhão Atlântico (agora MEO Arena). No ano seguinte, faz também a primeira parte para os Alphaville no Campo Pequeno, e torna-se uma das vozes do supergrupo Movimento (editaram um único disco em 2011), com Marta Ren, Selma Uamusse e Miguel Ângelo

A nível de sonoridade, as canções de Nosy fogem ao indie pop inocente e divertido  de Best Of. Ao segundo disco, Gomo aproximou-se mais das influências de Britpop e baggie (a produção de Nuno Rafael ajuda nesse aspeto) que o inspiraram inicialmente. Todavia, apesar das canções continuarem a ser boas, há um problema: falamos de um disco de pós-Britpop português a ser lançado em Portugal em 2009. O público simplesmente não estava à procura deste tipo de som. Além disso, o mundo da música, com o surgimento do Youtube e do MySpace, tinha-se transformado. O universo da música alternativa não era o mesmo e, em 2009, um projeto português a cantar em inglês já não tinha a mesma popularidade que um a cantar na língua materna. Se em 2004 Tozé Brito já andava a chatear Paulo a dizer-lhe que devia cantar em português, em 2009 era praticamente imperativo que isso acontecesse para chegar a um maior público.

Em meados de 2010, porém, o percurso de Gomo termina. Durante praticamente uma década, Paulo não irá lançar música nova. A razão para isso tem a ver com uma epifania que se dá após um violento acidente de carro. “Tive um acidente grave no mesmo local onde, uns anos antes, ouvi a ‘Feeling Alive’ pela primeira vez na rádio”, conta. “Quando saí do hospital, decidi avisar toda a gente que as coisas iam ficar por ali”, revela.

Atualmente

Paulo entendeu o acidente como “um sinal” do universo de que o seu caminho não era a música. No entanto, daí a dois anos, Paulo estaria a voltar a compor. É durante uma dessas sessões que escreve “You Will Grow”, a ser lançada uma década mais tarde. É uma faixa à Gomo: pop sorridente e orelhuda. 

“Em 2012, estava a gravar o que achava que ia ser um disco novo”, confessa Paulo. Porém, novo “sinal” do universo. Paulo tinha as maquetas guardadas num portátil e num disco externo, mas os seus amigos sugeriram-lhe guardar um backup do backup. Quando Paulo compra um novo disco externo e efetua uma cópia das maquetas para o novo dispositivo, apaga-as do computador. O que acontece? Algum tempo depois, ambos os discos externos avariam e não foi possível recuperar as maquetas. “Era outro sinal para nunca mais fazer música”, confessa.

Mas uma das maquetas – a tal “You Will Grow” – acaba por ser lançada. Como Paulo Gouveia regressou aos lançamentos resultou dos seus amigos o terem motivado para tal (muitos deles tinham também guardado algumas das maquetas de Gomo de 2012). É um amigo seu, Nuno Oliveira, que o ajuda a regravar e a reconstruir as maquetas. 

A história de Gomo, ao que parece, ainda não terminou de vez. Ao falar do futuro, escuta-se esperança na voz de Paulo em conseguir fazer mais coisas, apesar de saber que o seu tempo da ribalta já passou. 

“Não desejo nunca mais tentar como tentei naquela altura ter um grande sucesso”, confessa Paulo. Todavia, não deixa de refletir sobre o impacto que o sucesso de “Feeling Alive” deixou na sua vida.

“Como deves calcular”, confidencia Paulo, “para alguém que não sabe nada sobre música e tudo lhe caiu no colo, não consigo dar-me muito crédito perante tudo o que aconteceu. Fui abençoado e se calhar não soube aproveitar a oportunidade da melhor maneira”, reflete. “Depois, quando a queda é assim tão grande, acabas por colocar muita coisa em causa”, conta. Contudo, apesar da tristeza perante o que não aconteceu, Paulo demonstra felicidade face às cartas que o futuro lhe jogou. “Se as coisas tivessem corrido de outra forma, não estava aqui com as minhas três filhas que adoro”.

Em 2023, Paulo regressou aos concertos enquanto Gomo na Feira dos Frutos, nas Caldas da Rainha, e a receção do público foi positiva. Gostava de fazer uma digressão a celebrar os 20 anos de Best Of, mas confessa, entre risos, que já não consegue mexer “as máquinas como dantes”. “Não sou os Delfins”, brinca. Porém, quer finalmente disponibilizar Best Of nas plataformas de streaming, numa edição que poderá contar com um ou outro tema especial por editar. Além do mais, há um disco novo a caminho. Quando será lançado, só o tempo dirá. Se há coisa que Paulo percebeu com toda a experiência prévia, é que vale a pena fazer as coisas sem pressa.

E sobre “Feeling Alive”? Ainda hoje é uma grande canção. Está, para sempre, inscrita no Olimpo da pop portuguesa. O próprio Paulo, apesar de tudo o que aconteceu, tem consciência disso. “Pode existir uma tristeza grande em saber que as coisas poderiam ter corrido melhor, mas há uma música que vai ficar para sempre”, confessa. “O Paulo e o Gomo podem ser apagados, mas a música não”.

A criação deste artigo foi inspirada diretamente pela série “One Hit Wonderland” do Youtuber ToddInTheShadows.

Obrigado ao Manuel Simões por ter providenciado o disco de Gomo e as canções de Orange para escuta, e ao Henrique Amaro pelas capas do Blitz e Y do Gomo.

Foto de destaque: Carlos Barroso

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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