Há um planeta que orbita algures entre Guimarães e a estratosfera, um lugar paralelo onde as regras da gravidade não se aplicam e onde a música se constrói com grandes distorções e lápis de cera. Esse planeta são os Unsafe Space Garden.
Seis músicos habitam-no: Alexandra Saldanha (voz e teclas), Nuno Duarte (guitarra e voz), Filipe Louro (baixo), José Vale (guitarra), João Cardita (bateria) e Diogo Costa (teclas e backing tracks). Não são extraterrestres – embora às vezes pareçam. A sua nave dispara batidas disruptivas, capazes de flertar com a pop e, ao mesmo tempo, lançar mensagens profundamente humanas. É através dessa ponte que convidam o público a atravessar para o seu mundo: um território de terapia e de auto-aceitação. O objetivo é “destruir as paredes” que nos limitam e têm cumprido essa missão desde o início.
Com o primeiro longa-duração, Guilty Measures (2020), abriram as portas do planeta, em Bro, You Got Something In Your Eye – A Guided Meditation (2021) deram forma mais coesa à sua galáxia sonora; e com WHERE’S THE GROUND (2023) consolidaram de vez o estatuto de arquitetos de canções únicas firmando o lugar que lhes pertence neste cosmos musical.

No passado dia 12 de agosto, viveram mais um marco na sua história, estreando-se no festival Vodafone Paredes de Coura, no palco secundário, num final de tarde quente e luminoso que parecia feito de propósito para eles.
Horas antes do concerto, rumei do campismo até à vila de Coura. O calor tornava a caminhada árdua, mas foi recompensada pela conversa que tive com a Alexandra, o Nuno e o Filipe – à sombrinha, entre refrigerantes e Pernas de Pau. Tinham acabado de sair do soundcheck.
Chegou o momento
Estranhamente, apesar de se sentirem “otismísticos”, havia também um nervosismo no ar, confessou Alexandra. “Já fomos espectadores durante muitos anos. Vieram-me muitas memórias de edições passadas quando subi ao palco. Lembro-me de estar lá em baixo e, quando estás num festival, metade de ti está a ver o concerto e a outra metade está a imaginar que és tu no palco e o que farias se estivesses lá. Então, de repente, lembrei-me de todas essas vezes e pensei: chegou o momento”.
A caminhada da banda até este palco foi de facto árdua também. Antes de Coura, já tinham carimbado presença em festivais como o Primavera Sound Porto, o MEO Kalorama ou o Bons Sons. Ano após ano, os palcos onde a banda atua tornam-se maiores e a fasquia é sempre superada, impressionando pela facilidade com que se adaptam a dimensões que, para muitas bandas em ascensão, representam um desafio.

O amor por esses palcos, no entanto, não é unânime dentro do grupo. Alexandra e Filipe assumem a preferência pelos grandes cenários: gostam do espaço, da liberdade de correr de um lado para o outro e, acima de tudo, da possibilidade de brincar, brincar muito. Já Nuno encontra nos palcos pequenos um encanto especial: gosta da proximidade, da sensação de ter o teto perto, e admite que a transição para um palco maior carrega sempre um certo grau de estranheza. Ainda assim, o destino da banda parece traçado: a cada passo, a cada concerto, o caminho só aponta numa direção: para cima.
O universo sonoro e visual
Os concertos dos Unsafe Space Garden são sempre, além de uma catarse sonora, um espetáculo visual. Recheados de indumentárias coloridas e cenários improvisados, a banda salta sempre à vista, espalhando cor e irreverência. Raras foram as vezes em que cheguei diante de um concerto deles e não fiquei completamente maravilhado e surpreendido com novidades. Mas não são só os adereços. Existe também uma energia quase telepática em palco. Movem-se em sintonia, inventam pequenos sketches e gags no meio das canções como se estivessem a ler os pensamentos uns dos outros, fruto de anos a tocarem juntos, mas também de uma cumplicidade que vai além da música. Como disse a Alexandra, já se conhecem tão bem que até a forma como se movem em palco parece coreografada sem precisar de ensaio.
Entre os concertos mais memoráveis nesse aspeto, destacam o do Bons Sons, onde prepararam 150 cartazes para distribuir pelo público. Só não foram mais porque não havia espaço na casa do Nuno e da Alexandra, e tiveram de escolher entre armazenar mais cartazes ou ter um lugar para dormir.
E se pudessem exagerar à vontade, sem olhar a meios? O Filipe não hesita: “Um escorrega de água seria obrigatório.” A lista de sonhos inclui ainda alugar uma grua e instalar baloiços gigantes. No final, cada pessoa levava para casa um saquinho de chocolatinhos como lembrança.
Por agora, os delírios ficam em stand-by, e a prioridade é outra: um som perfeito. Para uma banda com o peso sonoro e a complexidade de efeitos que carregam, o rigor do rider técnico é o que gostavam que fosse sempre assegurado.
No concerto de Paredes de Coura não houve grua nem escorrega de água, mas houve algo inédito: a colaboração de João Figueiras no vídeo projetado durante o espetáculo, explorando estéticas visuais dentro do universo particular dos USG.
Além disso, surpreenderam o público com um breve trecho de “Killing In The Name”, numa versão de Rage Against The Machine, mas filtrada pelo toque inconfundível da banda. Não foi caso único: a banda já habituou os fãs a pequenas covers relâmpago de nomes como Linkin Park, Guns N’ Roses, Bon Jovi ou The Killers. Estas músicas são escolhidas por uma simples razão: porque são as bandas favoritas do grupo. Além disso servem sempre um propósito, pois estão agregadas ao momento de “ego check” do concerto. A Alexandra explica: “É como levar o carro à revisão, mas neste caso é o ego. Faço uma cover para me sentir poderosa e, de repente, já me restabeleço. Tocamos essa música, destruímo-la à nossa maneira, e voltamos equilibrados.”
Mas até o ego check tem limites. Há uma linha que a banda se recusa a cruzar: “Bohemian Rhapsody”, dos Queen. “É um guilty pleasure que ainda não arriscamos”, admitem – embora não fechem a porta à ideia de, um dia, apresentarem uma versão que esteja à altura do desafio.
A caminhada
Chegar ao palco de Paredes de Coura não foi tarefa fácil. Os Unsafe Space Garden nasceram por volta de 2017, mas a música só começou a fazer verdadeiro sentido para a banda há cerca de quatro anos, com a entrada de Filipe Louro – “o maestro que conseguiu orquestrar toda esta situação”.
Nos primeiros tempos, o projeto funcionava sobretudo como um espaço para Nuno dar forma às suas ideias. Mas à medida que lançavam o primeiro EP [Bubble Burst, de 2019], o círculo abriu-se a Alexandra e, mais tarde, ao próprio Filipe. “Ficou muito melhor quando eu comecei a participar, não ficou?”, provoca Alexandra. “Claro, por isso é que te deixei entrar”, responde Nuno, entre risos. Desde então, estes quatro anos foram um processo contínuo de aprendizagem e descoberta coletiva. “Perceber a música que queríamos fazer foi fácil e natural, a parte difícil foi aprender a fazê-la cada vez melhor”, descreve Filipe.
Para a banda, o palco tem sido a verdadeira escola. É no concerto que sentem a maior evolução. “Vivemos muito da música ao vivo, não do dinheiro é claro”, sublinha Alexandra. “A experiência de tocar faz com que os discos sejam moldados por essa sensação. Este ano, sobretudo, foi perceber quem somos em palco e isso influenciou diretamente a forma como gravamos.”

A sonoridade que os Unsafe Space Garden foram construindo ao longo destes anos já revela uma maturidade surpreendente. Conseguiram esculpir um som muito próprio, uma identidade que não se fixa numa só língua nem num só género. Tocam em inglês e português, mas há sempre uma portugalidade subtil a atravessar as canções. Ainda assim, recusam a etiqueta de “rock português”. Preferem chamar-lhe rock da Pangeia. Entre as várias tentativas de os definir, a que mais lhes agradou foi esta: “uma mistura entre José Mário Branco e Flaming Lips”. Uma descrição improvável que acredito capturar perfeitamente o equilíbrio entre a consciência política e a fantasia colorida que os caracteriza.
Essa fantasia vive também nos figurinos. Para a banda, “um disco nunca está pronto sem as respetivas roupas”. Como os Slipknot. Mesmo assim, adereços nunca serão uma limitação. Se um dia se fartarem de pintar a cara e de vestir roupas de fadas, já têm um plano: lançar o disco Normal, onde aparecerão apenas de polos da Pull&Bear e calças de ganga.
No meio de tanta energia, amor e irreverência, fica a questão: haverá espaço para haters? Os que estranham a extravagância estética identificam-se facilmente com a intensidade sonora. Os que não se rendem à jarda, rendem-se à mensagem. Mas há um público difícil de conquistar: os seguidores da página da MEO no Instagram. “O ano passado fomos convidados para fazer um vídeo para o MEO Kalorama a propósito da nossa atuação. No entanto, não foi a página do festival que partilhou, foi a da MEO, e fomos completamente enxovalhados”, recorda Alexandra. “Diziam que queríamos transformar Portugal numa França.” Entre críticas e memes, o episódio acabou por se transformar num motivo de orgulho pois o vídeo atingiu mais de um milhão de visualizações.
A caminhada não pára
E agora o que espera o futuro? Recentemente, os Unsafe Space Garden surpreenderam os seguidores com dois vídeos no Instagram, onde Alexandra e Nuno aparecem em formato acústico com apenas guitarra e vozes. Trouxeram “Mais uma voltinha”, faixa que integrará o próximo disco, embora não neste registo despido, e “Telefone Avariado”, que só verá a luz do dia quando a banda sentir que funciona para além da sua versão “fofinha”.
Aqui podemos ver uma nova faceta do grupo e ainda mais provas da capacidade de escrever canções que ganham novas formas stripped back, uma antítese absoluta do caos colorido e cheio de camadas que habitualmente levam para o palco. A experiência não deverá ficar por aqui; entretanto, Alexandra e Nuno já deram alguns concertos nesse registo minimalista e não excluem a hipótese de lançar mais músicas nesse formato.
Quanto ao futuro imediato, o foco está no próximo disco, previsto para “no máximo, daqui a seis ou sete meses”. O trabalho em estúdio avança com intensidade, e muitas dessas novas músicas deverão estrear-se já nos concertos que se aproximam. Projetos paralelos, como o Live From Madison Space Garden ou a banda desenhada que já lançaram, só voltam a ser possíveis com mais recursos. Mas a ambição continua a crescer, e o grande objetivo de longo prazo já está traçado: criar o Unsafe Space Musical, um musical onde a presença de La Féria é obrigatória, exclama Alexandra. Até lá, a prioridade resume-se ao essencial – um novo disco e salvar o mundo.
Fotografia de destaque: shootsounds