Academia de Amadores de Música: Um espelho do futuro cultural de Lisboa

Entre o restaurante Bairro do Avillez e a barbaria/bar o Purista, encontra-se um espaço com 141 anos de história e vida. Na agora chamada “Blue Street”, rua maioritariamente frequentada por turistas, são poucos os que reparam – especialmente aqueles que comem em frente – na placa “Academia De Amadores de Música – Fundada em 1884″, oferecida no 120º aniversário da instituição. Mas no meio de todo este novo movimento, há algo que demonstra resistência: a música. Aquela que se faz ecoar pela rua toda. Solfejos, melodias soltas de violinos, violoncelos ou saxofones que encantam aqueles que param naquela rua.

O encerramento de espaços culturais tem-se tornado um fenómeno cada vez mais frequente em Lisboa, impulsionado sobretudo pela crise da habitação provocada pela especulação imobiliária. Entre os casos mais recentes estão o Lounge, a Casa Independente, o Planeta Manas e a Academia de Amadores de Música (AAM), uma escola com mais de 300 alunos, que carrega consigo um historial de resistência e dificuldades financeiras.

Pedro Barata, diretor da Academia Amadores de Música, recorda que, quando integrou a direção, essa problemática já era tema de discussão. “Desde há muitos anos que a Academia queria sair daquele sítio”, afirma. O atual diretor explica que nunca foi estável depender de um senhorio, mesmo durante a vigência da Lei Cristas, altura em que a renda da escola sofria apenas uma atualização “minúscula”.

O verdadeiro problema surgiu em 2000, quando a Academia deixou de ter condições para pagar a totalidade da renda do espaço que ocupava – na altura, dois andares do edifício. “Houve a possibilidade de comprar o espaço atual, numa altura em que os preços ainda eram acessíveis”, assume Pedro Barata. Porém, essa solução acabou por ser descartada. Em alternativa, surgiu uma proposta que Pedro Barata considera “um episódio absolutamente louco”: foram realizadas reuniões com a Câmara Municipal de Lisboa para negociar a instalação da escola num edifício camarário na Rua do Crucifixo, com seis andares, que seria reabilitado pelo arquiteto Siza Vieira. “Foram dados vários passos, a única coisa que não se fez foi pôr tudo por escrito”. No ano em que surgiu essa proposta – 2001 – , o executivo de João Soares (PS) perdeu as eleições para Pedro Santana Lopes (PSD), e todas as negociações ficaram sem efeito.

A partir daí, músicos, professores e diretores percorreram um longo caminho de falsas expectativas. Em 2017, o governo do Partido Socialista introduziu uma emenda ao regime de arrendamento urbano, prevendo uma exceção à Lei das Rendas para entidades reconhecidas pelas autarquias como de interesse histórico ou cultural. Em 2018, a Academia foi oficialmente reconhecida como tal, ficando protegida dos aumentos. “Mas essa exceção é válida por cinco anos. Basicamente, é empurrar com a barriga”, critica Pedro Barata. Com o passar do tempo, essa proteção começou a ruir. A Academia foi confrontada com um aumento de renda impraticável, mas pensado para forçar uma renegociação. “Se as eleições tivessem sido desfavoráveis, quem nos garante que o estatuto seria prolongado? É um cenário possível. Não sabemos o que vai acontecer”, afirma.

Foi então tomada a decisão de abandonar o edifício. Durante os últimos dois anos, a Academia pressionou a Câmara Municipal de Lisboa para encontrar novas instalações para a instituição. “Foram dois anos de frustração tremenda”, em que a autarquia foi várias vezes interpelada para apresentar uma solução definitiva. Em junho do ano passado, a resposta do Executivo foi clara: “Não temos sítio para vocês”. Pedro Barata percebeu que a Câmara tinha desistido. “Saí dessa reunião completamente irritado, frustrado e deprimido. Não sabia o que dizer aos professores e aos pais” – o mesmo se passou nas conversações com o Ministério da Cultura.

Quando o problema sai à rua

Entretanto, o problema chegou à rua. Um grupo de pais uniu-se e criou a petição pública “Pela manutenção e salvaguarda da Academia de Amadores de Música”, que reuniu 8 307 assinaturas em apenas mês e meio. Pedro Barata viu então nascer uma causa comum, apoiada também pelos meios de comunicação social, que trouxeram o assunto para a agenda pública. “Ninguém nos vai salvar se ninguém souber que existimos. E a prova disso foram os últimos meses: a petição, a manifestação e a página no Instagram ‘Em Defesa da Academia’”. Foi nesse momento que Carlos Moedas, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa demonstrou, pela primeira vez, vontade em encontrar uma solução.

Contudo, essa solução depressa se tornou inviável e envolta em disputa política. Em novembro, Carlos Moedas sugeriu que a Academia ocupasse um espaço na Rua Vitor Cordon, atualmente partilhado pelo Organismo de Produção Artística do Teatro de São Carlos e pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. Embora a OPART tenha demonstrado disponibilidade, a Junta não concordou. “É uma disputa pessoal entre o Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e o Presidente da Câmara de Lisboa”, critica Barata. O conflito agravou-se quando Carlos Moedas anunciou publicamente a decisão, sem avisar previamente Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior pelo Partido Socialista. “Isso colocou-nos numa situação altamente sensível e vulnerável”, confessa.

A 26 de março, o diálogo foi retomado entre a Câmara e a Academia. Novas propostas foram debatidas, entre as quais um edifício pertencente ao Estado localizado na Avenida de Berna. Atualmente desocupado e sob a tutela da Estamo — empresa que gere o património imobiliário público —, trata-se de um antigo edifício militar que chegou a integrar instalações da FCSH. Carlos Moedas propôs que a Câmara adquirisse o edifício por inteiro. “Até agora temos apenas a palavra do Presidente da Câmara numa reunião pública”, explica Pedro Barata, consciente de que não é a primeira vez que a solução fica em suspenso por uma promessa. Ainda assim, mantém a esperança: “Acho que as pessoas são de boa-fé. Não tenho nenhum sinal para duvidar disso”.

Mas, como diz o ditado, a procissão ainda vai no adro. Com as eleições autárquicas a aproximarem-se, Pedro Barata espera apenas que a escritura de um contrato de promessa de compra e venda seja aprovada em Assembleia Municipal. Carlos Moedas prometeu, na última reunião de 14 de maio, que a Academia teria novidades no prazo de duas semanas. Isso não se verificou. Para o diretor da AAM, essa é a sua maior preocupação: “Eu não durmo com isto”.

A inquietação também se faz sentir entre aqueles para quem a Academia de Amadores de Música foi, durante anos, uma casa. A cantautora Joana Alegre considera que o futuro da Academia representa “um exemplo paradigmático de um momento de verdade para a autarquia liderada por Carlos Moedas: ou estão com a cidade, ou estão a executá-la como um grande conjunto de bens especulativos. “A preservação e valorização da Academia de Amadores de Música de Lisboa não é um capricho nostálgico, mas um gesto de coerência civilizacional e responsabilidade política no interesse nacional”, protesta a autora de LUAS.

Pedro Barata. Fotografia: Matilde Inês
Pedro Barata. Fotografia: Matilde Inês

O contrabaixista Carlos Bica recorda com gratidão o papel fundamental que a instituição teve no seu percurso. “Não será exagero dizer que, se não fosse a existência da Academia, muito provavelmente eu não seria hoje músico. A Academia deu-me a oportunidade de estudar música e de aprender a tocar um instrumento, mesmo sem ter quaisquer conhecimentos prévios – algo que, na altura, era impossível no Conservatório Nacional”, afirma.

Mário Laginha olha para a situação com uma crítica mais abrangente, dirigida à cidade e ao país. “Haverá um dia em que os turistas virão cá e pensarão que esta cidade já não é assim tão diferente das outras. As escolas foram empurradas para a periferia porque o espaço passou a ser desejado por quem tem muito dinheiro.” Para o celebrado pianista e compositor, cabe ao Governo e às Câmaras Municipais compreenderem a gravidade do problema e a importância da Academia na cultura e na educação. E conclui: “Esta estratégia é um erro de visão sobre aquilo que pode e deve ser o futuro de uma cidade.”

Tentámos falar com o Vereador da Cultura, Diogo Moura. No entanto, este explicou-nos por escrito que o pelouro da cultura já não lhe pertencia – depois de ser acusado num processo de manipulação de eleições internas do CDS -, mas sim a Carlos Moedas, que segundo o seu assessor, não tinha agenda para responder às nossas perguntas. 

Onde está a cultura?

Em 2011, Pedro Burmester, pianista e antigo director artístico da Casa da Música, já dizia ao jornal Público:

A Cultura está subfinanciada, e já o vem estando há muito. É ainda preciso definir o papel do Estado nesta área, que nestes últimos tempos me parece bastante confuso. Uma das suas funções tem de ser a gestão do património, mas também a criação de património. Confunde-se a Cultura com lazer, entretenimento e negócio, e não é aí que o Estado deve concentrar os seus parcos recursos. Julgo que se deve dar prioridade ao património, mas numa concepção de património vivo, um património de pertença, e não de postal.

Quase uma década depois, a situação parece longe de se resolver. Luís Sousa Ferreira, programador cultural, fundador do festival Bons Sons e atual adjunto da direção artística do Teatro Nacional D. Maria II, aponta o cerne do problema. “A cultura não dá votos. Quando as pessoas valorizarem a cultura, os políticos também vão valorizá-la”. Para que essa mudança ocorra, defende um trabalho de base, feito a partir do território. “Os agentes culturais têm de olhar para o seu território e agir com quem lá está. Identificar não-públicos, perceber porque não se chega a essas pessoas, criar relações com a educação, reativar associações. Muita coisa pode ser feita com os recursos que já existem”, sustenta.

No entanto, aponta três falhas fundamentais: falta de vontade, de coordenação e de coragem para arriscar. “Precisamos de espaços de risco, de experimentação, onde as pessoas possam criar, errar e aprender. Caso contrário, ficamos numa sociedade infantilizada, à espera que a Câmara decida por nós”, alerta. Pedro Barata acrescenta ainda que os espaços culturais não acompanharam o desenvolvimento da cidade e do público. “O mundo mudou, mas a Academia não se atualizou”, admite. E continua: “Quando as pessoas não sentem que uma instituição, por muito virtuosa que seja, tem uma razão de ser e presta um serviço social, ela morre”. Ainda que evite a culpabilização direta, reconhece que “infelizmente, na sociedade que temos agora, é preciso mostrar-se, de uma forma quase agressiva”.

Dentro da Direção Municipal de Cultura, a avaliação não difere muito. Laurentina Pereira, Diretora Municipal de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, confirma uma desvalorização da cultura por parte dos políticos. “Está sempre em primeiro lugar, mas também em último. Ou seja, tomam a cultura como algo garantido e que nunca poderá desaparecer”. Laurentina classifica essa postura como uma visão “utilitarista”. Questionada sobre o receio dos políticos em alimentar a cultura, responde que há uma vontade de deixá-la “sossegada”. “Todos os grandes movimentos de combate, de resistência e de liberdade de expressão nascem da cultura – a poesia, a canção, entre outros – e é através dessas áreas que podemos nos expressar. A cultura é um agitar de consciência e faz-nos falta”, conta. Quanto ao papel dos políticos, Laurentina Pereira acredita que a chave está no diálogo entre instituições, ouvindo os diversos setores do campo cultural. “Às vezes a falta de estratégia é uma estratégia, porque assim os políticos podem mostrar-se disponíveis para ouvir e aprender com as entidades para fazerem o trabalho. Esse é o propósito de uma entidade pública”.

Porém, seria impossível discutir cultura sem falarmos da sua engrenagem: o público. “As pessoas estão adormecidas e isoladas”, observa Luís Sousa Ferreira. E lembra que, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, todos têm direito a participar ativamente na vida cultural da comunidade, seja a cantar, dançar ou fazer teatro, independentemente da profissionalização. Mas esse direito tem vindo a ser esvaziado. A cultura, outrora vivida através de grupos de teatro amador, bandas filarmónicas ou cantares tradicionais, perdeu espaço com a desestruturação urbana, o envelhecimento populacional e a dissolução do sentido de bairro. “As cidades estão feitas para carros, não para pessoas. Não há espaços públicos de encontro. Nas aldeias, constroem-se casas junto a estradas nacionais, sem praças ou centros. Isso impede a criação de comunidade”, sublinha.

Laurentina Pereira. Fotografia: Matilde Inês
Laurentina Pereira. Fotografia: Matilde Inês

Já Laurentina Pereira caracteriza o público como “comodista” e saturado. “Lisboa atualmente vive um dinamismo enorme, com uma oferta cultural muito diversa e vasta. No entanto, esse excesso de opções faz com que as pessoas fiquem dispersas, não tendo um foco definido. Apesar de haver muitas atividades disponíveis, não se deslocam até os locais”, preferindo alguns assistir conteúdos digitais em casa. A diretora explica que muitos destes problemas surgem pela falta de mobilidade entre a periferia e o centro, e também pela forte presença do digital nas nossas vidas. Teme também que não haja futuramente sustentabilidade para todos os programas culturais viverem no mesmo ecossistema, e por isso, defende cada vez mais uma descentralização da atividade.

Quando questionada sobre a crescente insustentabilidade das rendas em Lisboa, a causa do encerramento de muitas casas culturais, Laurentina admite que a responsabilidade não recai exclusivamente sobre a autarquia. “Há muita coisa que o Estado também poderia ajudar a resolver. O problema é que, muitas vezes, o Estado nos trata como clientes, deixando-nos com essas dificuldades.” Reconhece, no entanto, que este é um dos maiores desafios da Câmara. “É o nosso maior fracasso e a nossa maior angústia.” A Câmara pode proteger alguns espaços através do reconhecimento de interesse histórico ou cultural, como aconteceu com a Academia de Amadores de Música, mas estas medidas são insuficientes e “têm perna curta”.

Para Luís Sousa Ferreira, o Estado central deveria garantir o acesso e a circulação da cultura, enquanto as autarquias teriam o papel de fomentar a realidade cultural local: apoiar associações, criar condições para os artistas, trabalhar com escolas e centros de dia. Contudo, “isso muitas vezes não acontece ou é feito sem critérios claros.” O problema, diz, não reside no financiamento, mas na ausência de foco e estratégia. “Gasta-se com superficialidades e não se investe de forma estruturada. É essencial haver colaboração entre setores e partilha de recursos.”

Resistência como pilar da cultura

Foi um longo mês e alguns dias de silêncio por parte da Câmara Municipal até  novo desenvolvimento. Na passada quarta-feira, 2 de julho, Pedro Barata anunciou, através de um comunicado a todos os professores e pais, que no dia 9 de julho a proposta de aquisição do imóvel da Avenida de Berna será levada a votação na reunião de vereação da Câmara Municipal de Lisboa.

Na proposta consta que a aquisição será feita “para acomodar em parte do edifício as futuras instalações da Academia de Amadores de Música”. Nessa reunião, espera-se que seja aprovada a proposta de aquisição e de seguida elaborado e negociado pelos serviços da Câmara o Contrato de Compra, o qual será seguidamente levado ao Tribunal de Contas.

No comunicado lê-se ainda que “a CML e a ESTAMO concordam também com um figurino jurídico que permitirá à Academia efetuar estudos e obras ainda antes da assinatura do Tribunal de Contas”. Em paralelo a estes desenvolvimentos, é confirmado no anúncio que a Academia chegou já a um entendimento com o senhorio para que a data final de ocupação pela instituição passe automaticamente para o dia 31 de agosto do ano seguinte se não for encontrado comprador e notificado até ao mês de março de cada ano. “Tal implica que a permanência da Academia nas atuais instalações está assegurada pelo menos até ao dia 31 de Agosto de 2026”, lê-se.

Curiosamente parecia que a Academia adivinhava a sua prevalência. Semanas antes desta resposta, visitamos a Academia, e a rotina fluía com normalidade. Alunos de todas as idades entravam com os seus instrumentos às costas e professores recebiam-nos com entusiasmo à porta da sala para começar mais uma aula. Ao caminharmos pela escola escutamos diferentes bandas sonoras. Na sala de convívio escutava-se a agitação entre os alunos mais novos na brincadeira. Nos corredores, ouvíamos solfejos, peças inteiras de piano. No andar de cima, solos de guitarra. O habitual. Contudo, havia algo de diferente: uma esperança renovada para um futuro melhor.

“Se nos mudarmos para a Avenida de Berna, acreditamos que será possível desenvolver um projeto da Academia de Amadores de Música mais interessante para a cidade”, afirma Pedro Barata. Além de expandir a receção de novos alunos e a atividade pedagógica, o projeto ambiciona gerir uma sala de espetáculos, uma sala para ensaios públicos e colaborar com outras instituições, como o Conservatório Nacional, bem como a vizinha Orquestra da Gulbenkian. “Porque não criar um espaço onde os luthiers possam trabalhar? Ou até torná-lo acessível ao público, para que os visitantes reconheçam um trabalho que tantas vezes passa despercebido?”, sugeriu entusiasmado. A Academia de Amadores de Música inicia um novo ciclo, tendo em mente que o seu papel é continuar a fortalecer a cultura da cidade.

Matilde Inês é uma pessoa que se emociona com os pequenos pormenores. É mais provável ouvimo-la a cantar as back vocals ou solos de guitarra, do que a letra principal. Recém licenciada em Ciências da Comunicação e que, atualmente, trabalha como radialista e jornalista na Rádio Voz de Alenquer. De vez em quando, escreve aqui e ali sobre música.
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