Carte Blanche a O Marta

Na minha mais recente viagem, fui à Irlanda em busca de me conectar com uma pequena parte das minhas origens. Sou neto de avós puramente beirões, ou pelo menos assim pensava na minha ingenuidade. No entanto, descobri recentemente que isso não era bem verdade, talvez não a 100%. Um dia, ao discutir com a minha mãe sobre a minha curiosa necessidade de procurar todos os anos por música tradicional irlandesa, ela mencionou que isso, possivelmente, devia-se ao fato de a minha avó ser descendente de um antigo soldado irlandês, que teria vindo para Portugal na época das invasões francesas. Isso despertou em mim um sentimento de incrível alegria e admiração, apesar de estar claro na família da parte da minha mãe uma descendência que não é somente portuguesa, visto que as minhas tias, a minha avó e a minha mãe têm todas cabelo ruivo ou loiro.

Voltando à viagem, decidi ir para a Irlanda para talvez me encontrar como pessoa, se é que isso alguma vez fez sentido. Quis sentir-me inspirado pela música tradicional irlandesa, tal como a música tradicional portuguesa me tem inspirado nos últimos anos. Quis ir para os “pubs” e sentar-me perto dos músicos para ouvir toda uma panóplia de novos instrumentos, ou mesmo alguns que já conhecia. Quis ouvir o cantar na língua gaélica ou num inglês com sotaque carregado e “sujo” pela grande quantidade de bebida consumida pela noite adentro. Comprei uma flauta numa pequena loja de música numa cidade chamada “Galway” e quase que levava comigo um pandeiro de 30 cm que não me iria caber na mala. Tive de considerar as prioridades, ou a roupa ou o pandeiro. Escolhi o pandeiro… Não por muito tempo, na verdade, pois houve alguém que me chamou à atenção das mudanças drásticas de temperatura na ilha e que viver só e unicamente de uma t-shirt amarrotada não seria boa ideia.

O tempo foi algo que me despertou tamanha curiosidade porque não se decidia entre sol ou chuva. Talvez eu também seja assim: não consigo escolher, e talvez essa seja uma característica minha que muitas vezes me impede de decidir quem realmente quero ser. No meio disso, percebi que tudo afinal era muito claro e que não era ali o momento para me encontrar, mas sim, talvez, ficar mais perdido. Mas isso é bom, porque tudo o que é demasiado garantido deixa de ser apetecido, até mesmo o principal objetivo da minha viagem, que era encontrar as minhas origens. Spoiler alert: não encontrei. Não encontrei porque também sinto que não a procurei; encantei-me demasiado com tudo o que me rodeava — a música, as paisagens, as pessoas e o tempo.

Decidi andar muito de comboio e de autocarro, percorrendo muitos cantos do país. Nas longas viagens, dei por mim a ler sobre a trágica história do país — da fome, das tentativas de revolução, do domínio inglês, da ocupação de vários povos que tentavam domar um povo que não se deixa ser domado, tal como os nossos beirões. Mas então o que é afinal ser beirão e ser irlandês? Bem, é a mesma coisa: o tempo está sempre incerto, chove muito, faz frio de rachar quando tem de fazer, faz um sol abrasador que deixa um escaldão com três camadas, tem imensos campos verdes cheios de pedregulhos, e ambos não se sabem comportar numa praia.

Sei que parece que estou a vender um destino turístico, mas não é isso. A Irlanda é um país que também tem os seus próprios defeitos, mas isso é uma história para outro dia. Sei que fui muito feliz lá; saí bastante cansado, muito escaldado, mas muito inspirado para escrever cada vez mais música.

Despertou-me muito a atenção o fato de todos os “pubs” terem música ao vivo, e até mesmo as ruas são um palco inicial para novas bandas testarem o seu material ou iniciarem o seu percurso musical por meio de covers. É difícil contar a quantidade de miúdos a tocar na rua com as suas bandas e a quantidade de música tradicional a ser tocada ao vivo em todo e qualquer lugar, mesmo contra as adversidades da chuva e do vento e até mesmo a tocar em ruas vazias. Recordo-me de ver um artista a tocar numa praça vazia, com um único idoso sentado num banco, coberto pelo seu chapéu de chuva foi um momento mágico. Sinto que a Irlanda é isso mesmo, um país talvez demasiado mágico para se descrever e talvez seja melhor fazê-lo a cantar, quem sabe numa outra das minhas aventuras na música, mas a minha viagem acabou e, portanto, vou descansar.

Podes escutar Casta Brava, o novo disco d’O Marta, nas plataformas digitais do costume:

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