Aí estão eles de novo. Os festivais de verão. Com eles regressam também as vidas festivaleiras dos melómanos que ainda resistem gastar (demasiados) mil-reis para ir a simpósios de capital onde também há música, tudo isto para viver o som e brincar aos concertos. Dos mediáticos e industriais, o que abre as lides é o Primavera Sound Porto, edição portuguesa do festival catalão que surge em 2025 para superar as mazelas com que ficou dos pontapés que levou em 2024. Não fazendo por menos, a edição deste ano chegou com pompa e circunstância, apresentando nomes de peso em letras grandes como Charli XCX, Fontaines D.C., Turnstile, Jamie xx, Haim, entre outros.
Um dos nomes que mais arregalou a vista dos melómanos no Parque da Cidade do Porto foram os Deftones. Contudo, o regresso a Portugal dos californianos após um interregno de oito anos, gerou algum barulho de descontentamento quando foram anunciados os horários. Tal deveu-se a uma constante que o festival portuense parece querer cunhar como tradição: as sobreposições que não lembram nem ao menino Jesus. No segundo dia do Primavera Sound Porto, os Deftones tocaram no horário madrugador de quarenta minutos após a meia-noite no Palco Vodafone (antigo principal). Ao mesmo tempo, um gigante do hip-hop alternativo atuava no Palco Revolut nove anos após a sua última atuação em solo luso. Falamos, então, do rapper Denzel Curry. Para quem estranha tal conflito de interesses, tenha-se em conta que apesar de estarmos a falar de géneros e sonoridades bem distintas, o rapper da Flórida é muito inspirado esteticamente pelo metal alternativo de bandas como os Deftones (nunca esquecer a sua versão de “Bulls on Parade” dos Rage Against The Machine), para além de que é mais do que convidativo a sons mais abrasivos dentro do trap e de já ter navegado em incursões metal. Os Deftones, por outro lado, também carregam na sua música a influência do hip-hop.
Ora, uma sobreposição não só significa que há bilhetes que parecem ficar mais caros, pois perde-se a hipótese de ver na íntegra dois concertos, mas também que terá de haver separações nos grupos onde exista uma divergência daquilo que se quer ver. Foi isso que aconteceu na equipa Playback com os redatores José Duarte e Eduardo Ribeiro. Já acostumados a serem uma feroz tag team de concertos e festivais (só no Parque da Cidade, já é a quarta edição em que partilham vivências), tiveram, com infelicidade partilhada, de se separar para cada um ir ver o concerto que queria. Eduardo assistiu ao concerto dos Deftones, José ao concerto de Denzel Curry. Numa correspondência entre o Algarve e o Minho, os dois relatam ao compincha aquilo que o seu lado da estrada viu.
Mequie Edu,
Ainda deves estar a dormir, mas enquanto estou aqui entediado nesta minha viagem madrugadora de Alfa Pendular, lembrei-me de aproveitar este meu acordar intermitente para começar a tal conversa que ficámos de ter há umas horas, quando estávamos em Fcuckers e tive de cortar o convívio para vir apanhar o comboio. Isto de ir a festivais no norte para na manhã seguinte estar no Algarve é qualquer coisa.
Pois bem. Sobre esta bifurcação festivaleira, que até é fortuita de ser relatada em texto, em que os nossos caminhos se afastaram contra a nossa vontade, tenho-te a dizer que pouco posso escrever que transpareça fidedignamente o turbilhão de emoções que foi ver Denzel Curry.
Como penso já termos privado sobre Denzel – até parece que consigo ver-nos a conversar na sala da minha prima sobre a sua impecável versão da “Bulls On Parade” -, sabes que era um concerto que ansiava bastante. Até vou mais longe e conto o tempo em que no meu secundário, na altura das revelações dos alinhamentos dos festivais de verão, andava com um dinheiro guardado meticulosamente caso o seu nome fosse anunciado. Eis que quase 10 anos depois da sua última passagem por solo português, é uma edição recheada do Primavera Sound Porto que marca o regresso de Zeltron.
Claro que era de longe o concerto do qual estava mais à espera do festival, talvez até do ano em geral. Ainda assim, tive a oportunidade de vir para cá já ontem “bratinar” e gritar com os camaradas irlandeses. Conhecendo-te como conheço, escusas de sofrer por não ter vindo, pois apesar de até ter gostado de estar presente neste fenómeno que foi a festa brat e o grito contínuo e conjunto pela Palestina liderado pelos rapazes de Dublin, sei que terias muita calinada a apontar. No meu caso digo que Charli XCX é de facto um furacão de palco, enchendo-o com facilidade e sem grande artifício para além de luzes estroboscópicas, acrescentando que devia optar pelos seus originais ao invés de se deixar levar por todos os remixes que camuflam o seu reportório em faixas de minanço dançante. Já os Fontaines D.C, notei-os bem mais astutos com o seu Romance face ao que vimos no Paredes de Coura em 2024 e não deixo de louvar o seguimento de culto que eles têm conseguido, havendo esta aura de “grande banda” que tão boa é de sentir quando se é da geração que a constroi.
De qualquer das formas, só conseguia pensar na meia noite e quarenta de dia 13 para 14. Porém, até lá ainda estivemos a partilhar um roteiro, que eu encurtei ao sair mais cedo do concertalho que os Chat Pile estavam a dar – quando vierem a nome próprio, é comprar de imediato camarada -, concerto este que já me disseste que só melhorou após a minha ausência. Mas foi o preço a pagar para poder arranjar um local bem lá à frente em Denzel Curry, que já contava com uma legião de malta pronta para virar do avesso o palco das finanças. Tal como eu, havia uns compinchas lá que também lamentavam a consequente ausência a Chino Moreno e companhia. Contudo, penso que não tenha sido pensamento que tenha imperado durante muito tempo, pois após uns incentivos do DJ Poshtronaut, eis que surge, diretamente de Carol City e em plena tour europeia, Denzel Curry com a voltagem no máximo a interpretar a malha “ACT A DAMN FOOL”. Como já tinha visto diversas vezes em vídeos internet fora, destacando-se assim de cabeça aquilo que aconteceu no Outbreak em 2023, sabia que o que devia esperar de Denzel era um verdadeiro animal de palco, com energia infinita e uma postura de super-herói que usa toda a sua valência para incentivar saltos enraivecidos e uma festa quasi-punk através de tecidos de hip-hop sulista. O que obtive foi exatamente isso, somando a transcendência que é ver um super-humano a modestos metros de distância.
A verdade é que ao ritmo e qualidade com que o Curry se lança, ver-se um vídeo de um concerto dele corre-se o risco elevado de ver uma tracklist que nada tem a ver com aquilo que apresenta no presente. Porém, Denzel tem muita consciência da robustez que o seu catálogo tem vindo a ganhar e sabe como o dosear muito bem ao longo do espetáculo. Percorreu todos os seus projetos, sempre com uma energia infectante e incessante. É por isso que passou desde uma das faixas presentes no deluxe do seu último disco, King Of The Mischievous South Vol. 2 , – de onde também apresentou os malhões “GOT ME GEEKED” ou a explosão que foi “STILL IN THE PAINT”, embebida em muito hype derivado da base sónica de Waka Flocka Flame -, para êxitos como “RICKY”, que Zel transforma num autêntico canhão trap pela forma como coloca o público em efusão. Magia esta que ele também aplica em “Walkin”, no sentido que é também uma faixa com produção requintada e com 808s pacatas mas malandras (portanto, não tão indutora de hype e “rage”), e que por isso mesmo não faria metade da mossa ao vivo se não existisse um maníaco propulsor de rambóia do outro lado do microfone.
Em constante interpolação entre canções do seu mais recente longa-duração, piadas e interações com o público e o seu DJ, o ex-Raider Khlan entregou canções que já estão no cânone da sua discografia sem nunca deixar o concerto cair em momento morto. Pelo contrário. Poucos foram os momentos de repouso. Enquanto tudo isto decorria, Curry não parava quieto, fazendo sempre vai-e-vens de um lado para o outro do palco, transformando-se num autêntico saltitão em solidariedade com o público que muito pó levantava. Honestamente, foi uma masterclass de como fazer um concerto de hip-hop, contrastando com alguns exemplos com que nos deparámos no festival, como o de Aminé, que se colocou à sombra da bananeira das backing tracks e fez mais figura de um DJ/hype-man das suas próprias canções numa atuação que está mais perto do nome desta revista do que de alguém que se afirma “cantor”.
Já Denzel Curry entregou-se só com os seus beats, que por si só já são indutores de muita potência, e não deu descanso às cordas vocais, cuspindo todas as palavras com diferentes e sempre alteráveis flows, nunca deixando de espantar pela sua capacidade camaleónica de ir alterando as suas inflexões vocais, das mais gritantes e raivosas às mais soulísticas num espaço de segundos. No fim de tudo isto, ainda teve capacidade de impulsionar o público para mais alvorada ao saltar em uníssono sem ficar quieto nem calado, como se viu na tríade de canções como “COLE PIMP”, onde cantou, “BLACK FLAG FREESTYLE”, onde cuspiu barras, e “G’Z UP”, onde desarrumou a casa.
Claro que estando perto da grade, não me envolvi muito nos moshpits, que bem sabes que não são os meus locais favoritos de se estar num concerto. Ainda assim, sempre que olhava à retaguarda era comum ver grandes fossas na plateia, tendo o maior sido na malhona incrível que é “HOT ONE” – das maiores responsáveis por nos próximos dias ficar com a voz rouca. Apesar de não ter “visto”, senti bem na pele as repercussões da festarola que se fez com “SUMO | ZUMO”, que contou com uma aparição no ecrã do grande CEDDYBU – para a referência, ver o episódio do The Cave com o Denzel – e, claro, a explosão que foi a geracional “Ultimate” – bonito foi o comprimento inter-temporal que dei no meu eu de 13 anos ao ouvir esta malhona ao vivo.
Numa hora recheada de boa pancada hip-hop, este Super Sayian do rap brindou ainda o público com uma viagem do tempo ao cantar “Twistin”, faixa da velha guarda do hip-hop digital que divide com Lil Ugly Mane, regressou às origens com “Threatz”, cantou “DIET_” (malhão que faz parte de UNLOCKED, o disco que fez com Kenny Beats) por cima do beat de “TV off” de Kendrick Lamar (tendência que surgiu no Twitter) e ainda nos brindou com “ULT”, um dos seus primeiros êxitos da altura de IMPERIAL. Preferia que o Denzel tivesse cantado mais sons desse disco, como a “This Life”. Tinha sido melhor do que escutar “GOATED”, faixa que Curry rouba a Armani White pela forma como consome o verso. Por fim, ainda houve tempo de gritar com a boca cheia “FUCK ICE” e deliciar-me com o banger “CLOUT COBAIN | CLOUT CO13A1N”, que continua a envelhecer como vinho.
Após o concerto, bem viste o quão suado me encontrava e não foi para menos. Foi uma hora de forte cardio que eu nunca me perdoaria se tivesse perdido. A energia do público também ajudou, havendo um degradê interessante entre fãs hardcore lá à frente que tentavam cantar o que Curry esculpia em palavra falada, fãs de hip hop para abanar o capacete conscientes da potência das canções e os curiosos que provavelmente foram engolidos por este furacão floridense.
Curry não só é um dos mais consistentes do game atual do hip-hop, como agora posso por experiência afirmar que é também um dos performers mais sólidos do ritmo e poesia. A versatilidade com que une as suas valências vocais a uma aptidão física de louvar pela presença atlética com que preenche em constante movimento o palco e à sua capacidade de cuspir barras e guiar uma plateia é hipnotizante. De certa forma, também é aterrador pensar no quão completo é este artista e saber que há uma hipótese da sua melhor versão ainda nem sequer estar disponível.
Resta-me agora esperar que não necessitemos de aguardar mais de 10 anos pelo regresso de Denzel Curry a Portugal. Se possível, que até seja um regresso para um concerto a nome próprio, tal como aquele que aconteceu no Musicbox em 2016. Mais importante que isso, que possamos ir os dois, pois com certeza que ias gostar de ter visto isto.
Mas bem, já estou de novo a dar cabeçadas de melatonina em plena locomotiva e já tagarelei o suficiente. Espero que te encontres bem e aguardo ansiosamente pela tua resposta a detalhar-me o que perdi em Deftones. Quem me dera ir ao último dia (que acho que é o melhor em termos de programação) e parte tudo nesses Turnstile pá. Além disso, diz-me como foi Floating Points que também me estou a roer todo por não poder ir.
Depois contas-me tudo. Por isso, responde-me sem pressa.
No Algarve te espero.
Vamos falando.
Atenciosamente,
José Chambre Duarte
Boa noite Zé,
Escrevo-te ainda com o corpo moído depois de uns dias incríveis no Parque da Cidade. O terceiro dia do festival foi uma grande correria. A tua ausência sentiu-se muito, especialmente durante o concerto dos Turnstile (ninguém que veio comigo gostava). Faltavas lá tu para fazermos um circle pit com a malta do hardcore.
Mas, justiça seja feita, nem foi esse o ponto mais alto da noite, como bem previste. O cartaz estava super sólido e, honestamente, não houve tempo para pausas. Vi praticamente tudo o que se podia ver. Fui apanhado de surpresa pelo emo cru dos Cap’n Jazz que, só me apercebi depois, tinha na bateria o Mike Kinsella dos American Football. Depois veio o charme pop meio desalinhado de Destroyer, onde também fez muita falta um gin tónico (fez sempre falta, não é, mas neste concerto fez mais). E claro, ainda consegui apanhar a fada do alternativo dos anos 90, a Kim Deal. A Kim Deal dos Pixies, de Breeders, da adolescência inteira. Ver aquele sorriso e ouvir aquele baixo foi voltar a ter 16 anos. O melhor do último dia foi, sem sombra de dúvida, Floating Points que deu um showzaço para fechar o festival.
Ao escrever-te, não consigo afastar o meu arrependimento teimoso de não ter visto contigo o concerto do Denzel Curry. Não é só por sabermos os dois que ia ser top, mas também pela história. E porque, como já te disse, sempre associei o Denzel a ti. Foi na mesma altura em que o comecei a ouvir que me mostraste o Album of the Year, e desde aí que ficou claro que o hip-hop era muito mais do que apenas 2Pac e Kendrick Lamar (LOL). A memória que tenho mais nítida de tu mo mostrares não é desse tal cover da “Bulls on Parade”, mas sim do episódio dele com o Kenny Beats no Cave. Mesmo assim, já sabes como sou, não posso negar as minhas raízes metálicas.
Agora, o concerto dos Deftones. Antes de dizer seja o que for, preciso de esclarecer uma coisa: eu fui ver Deftones por puro fear of missing out.. Sempre que se fala destas bandas com mais de 20 anos de estrada que têm música que me diz muito, não consigo afastar pensamentos como “e se o vocalista se mata?”. Ou pior: “e se se descobre que o vocalista é um boi e a banda acaba amanhã?”. Então, fui mais naquela de garantir que os via antes de qualquer tragédia acontecer. Não que não estivesse entusiasmado, claro que estava, mas fui mais com aquela missão de riscar da lista antes que desapareçam para sempre.
Não sei se estás a par da lore de Deftones, mas eles são uma banda já completamente consagrada na cena metal, mas com uma aura muito própria. Na altura em que apareceram, muita gente apressou-se a colar-lhes o rótulo de nu metal porque surgiram no meio dessa vaga e andaram em digressões com bandas que são praticamente sinónimos do género, tipo Korn. Até eram amigos deles, o que ajuda à confusão. Mas dizer que os Deftones soam a Korn é estúpido, porque não têm mesmo nada a ver. A vibe, no entanto, sempre esteve lá. Adolescentes deprimidos a andarem de skate, de calça larga a comprarem cigarros mentolados avulso, e a fazerem fucks na TV. No entanto, os próprios Deftones sempre rejeitaram essa associação. Mesmo assim, conheci-os precisamente quando andava a explorar esse mesmo género. Se houver um rótulo mais justo, talvez seja o de alternative metal, porque a música deles é um patchwork de influências. Sim, há guitarras pesadas e riffs que te viram do avesso, mas também há ali camadas sonoras gritantemente shoegaze (cujo revivalismo é em parte culpa do “novo” sucesso dos Deftones) e isso sente-se, especialmente nos dois álbuns mais marcantes: Around the Fur e White Pony. Que, já agora, são os únicos que conheço, mas por onde vale mesmo a pena começar. A malta mais fanática também te diria o mesmo.
Quando cheguei então ao palco Vodafone, o recinto estava bem composto, mas nada de claustrofobias à Kendrick ou à Nick Cave. Fiquei ali perto da régie, num spot confortável, onde o som estava perfeitinho. Uma das coisas que mais me surpreendeu foi o público. Havia uma diversidade que não esperava. Via-se malta de diferentes idades e diferentes tribos, mas todos com a mesma coisa em comum: uma depressão que já vinha desde a adolescência. Não era aquele mar de metaleiros ortodoxos com battle vests carregados de patches (esses até diria que estavam em minoria). Em vez disso, vi muitos jovens a competir para ver quem tinha a t-shirt dos Deftones mais gira, e outros que claramente compraram a camisola na banca do merch antes do concerto começar, para enfiar por cima da sua camisa da Springfield. A vibe era mais emo do que metalhead.
Ao contrário do que aconteceu no ano passado, quando te larguei para ir ver Pulp enquanto tu foste ver billy woods, desta vez não marquei lugar à frente para os Deftones. Cheguei mesmo em cima da hora, momentos antes da primeira música, porque fiz questão de ver o concerto todo dos Chat Pile que, já agora, depois do festival acabar, posso dizer com toda a certeza: foi o melhor concerto que vi este ano no Primavera. Vais ter que pagar multa por perder o concerto, malandro.
Mas voltando aos Deftones: começam logo com um banger. Aliás, “o banger”, “Be Quiet and Drive (Far Away)”. Começaram bem, bem o suficiente para erguer a fasquia para o que esperava do concerto, que estava, sinceramente, no rés-do-chão. Das gravações ao vivo que tinha visto no YouTube, a voz do Chino Moreno parecia pedir misericórdia e os cigarros mentolados não pareciam andar a fazer-lhe nada bem. Mas não. O homem apareceu em forma, e quando começou a cantar enganou-me completamente. A voz estava lá, com força e clareza, exatamente como no disco.
O público enlouqueceu mal soou o primeiro acorde, com aquelas guitarras com afinações todas maradas, que são marca registada da banda. Foi curioso ver tanta gente a delirar com uma música que, na verdade, não é muito dada ao movimento. Via-se muita energia em palco, mesmo para uma música tão lentinha e o Chino a saltar como se tivesse molas nos pés. Todos eles estavam com um stage presence de quem sabe bem o que está a fazer.
E como se não bastasse, logo a seguir arrancam com o segundo hino do alinhamento: “My Own Summer (Shove It)”. Esta, igualmente à anterior, transpira libidinagem e suor – entenda-se com isto, no entanto, que a libidinagem que falo não é sensualidade, mas sim aquela vibe do tipo “vou-me embebedar e mandar mensagem ao meu ex”. Mas sim, gritou-se muito.
Aqui o setup da banda fez todo o sentido: um palco moderno, com torres de luzes sincronizadas, que deram ao concerto uma estética meio cyberpunk, meio rave industrial. Denso, elétrico e com aquela sensação de que tudo podia explodir a qualquer momento.
Mas olha, não te vou mentir, depois desse arranque demolidor com os dois hinos, fiquei ali meio desconsolado. O que eu mais temia aconteceu: tornou-se, basicamente, um concerto de êxitos. O entusiasmo do público esmoreceu, ainda que discretamente, quando começaram a tocar temas fora dos Around the Fur e White Pony. Não por culpa da banda, longe disso, eles continuavam com a mesma entrega física, mas notava-se no ar aquela vibe de “ah, esta já não conheço”. Mesmo que tenham tocado ainda uma boa quota de músicas desses discos, não posso dizer que tenha chegado. Não era que as músicas dos discos mais recentes fossem más, até eram fixes, mas notava-se um declínio de qualidade gigante.
Na frontline, no entanto, não se devia notar tanto esta mudança de entusiasmo porque os alternativos portuenses são outra espécie: basta que a música tenha mais de 80 bpm e já estão em moshar esteja a tocar o que estiver. Eu, por outro lado, fui com outra postura. Fiquei no meu canto só a absorver.
A meio do concerto, no entanto, fui apanhado de surpresa por outra coisa. Como sabes, sou bastante alheado desse mundo de TikTok e afins, por isso não fazia ideia de que essa praga já tinha chegado aos Deftones. Mas aparentemente chegou e cortou-me a moca toda do concerto quando oiço ao meu lado “ei que top esta é a música do tik tok”. Se há forma de me fazer perder instantaneamente o interesse por uma música, é dizerem-me que está a bombar no TikTok. Foi, portanto, um concerto que deu para matar o bichinho mas mesmo assim não consegui deixar de ficar desolado.
A certa altura olhei para o relógio e percebi que, com alguma sorte e uma corrida, ainda conseguia apanhar a “Ultimate” do Denzel. Tinha espreitado a setlist antes do festival, por isso sabia mais ou menos quando ela viria. Saí disparado, mesmo enquanto “Change (In the House of Flies)” ecoava no fundo, o que tornou este abandono extremamente cinematográfico.
Acho que se não tinha ficado claro que tu tinhas sido o vencedor deste duelo de concertos depois de te ver todo suado no recinto, depois de ler o teu texto não restam dúvidas nenhumas.
Espero que nos encontremos ainda em Julho grande amigo, nalgum festival a meio caminho entre Braga e Faro, depois mando-te uns pitches de fins de semana aí a meio caminho para os dois. Caso tenhas sugestões, sou todo ouvidos.
Aproveita muito a praia camarada.
Atenciosamente,
Edu
Boas Edu,
Desde já obrigado pela resposta e… porra, já me esquecia que Cap n’Jazz também tinha tocado no último dia do festival., Cada vez mais a sentir remorsos de não ter estado presente. Para evitar o fear of missing out, nem fui às redes este fim de semana. Não que tenha tido muito tempo para o fazer, verdade seja dita, mas foi por uma boa causa. Esperemos que se traduza numa maior aquisição de meios para investir em experiências musicais.
Quanto ao resto, oh seu malandrinho, aí a dares-me “metalsplaining” de Deftones como se eu fosse um nabo e não curtisse também a minha dose de Around the Fur. Aliás, eu e muito boa gente que estava no concerto de Denzel Curry estava bem ciente da influência dos californianos. Denzel é um rapper “metaleiro-friendly”, o que demonstra a falta de noção que foi esta sobreposição. Apesar do teu relato, continuo com pena de não ter visto Deftones, se bem que estou mais que tranquilo de consciência, pois para mim nunca foi uma dúvida – ainda assim tudo teria sido melhor se pudéssemos ter visto ambos.
Ah e deixa-me que te diga que achei engraçado teres-te desligado do concerto de Deftones por associações TikTokianas, mas depois foste a correr para ver a “Ultimate” – um bangeralho pioneiro nas tendências dos vídeos curtos, lá nos tempos em que as garrafas de água davam mortais.
A presença elevada de “malta triste” para mim não foi surpresa nenhuma e até constituiu a temática desse dia nas nossas conversas de brincadeira. Quanto a Chat Pile, é como te digo, lá estarei quando regressarem até porque ando a colar em muito barulho ultimamente.
A ver se nos vemos antes do Sonic pá.
Se possível, num sítio em que a cerveja seja mais barata.
Grande abraço!
Atenciosamente,
José Chambre Duarte
Grande Zé,
Tens toda a razão, peço desculpa pelo “metalsplaining” gratuito. Já por diversas vezes subestimei o teu conhecimento de lore do metal.
Quanto à “Ultimate”, admito que fui incoerente. Fui na fé do banger e deixei-me levar. Mas olha, todos temos os nossos limites, e os meus começam precisamente quando entra uma “Sextape” em que se canta, em falsete lascivo, um “tonight (we ride)”, sussurrado ao ouvido (claramente uma referência sexual). Aí, meu caro, é onde traço a linha.
De qualquer forma, deixo aqui a promessa solene: no próximo concerto de Denzel Curry estarei contigo do início ao fim!
E olha, mesmo rodeado de malta triste – que, como disseste bem, foi temática do dia – conseguiste fazer de mim um homem feliz através da tua companhia. Vemo-nos em breve para mais um duelo do jogo dos finos.
Grande abraço,
Com camaradagem e sede,
Edu
Artigo inspirado na rubrica Crítica Epistolar do site À Pala de Walsh.