O grito de afirmação de Cláudia Pascoal

Enquanto melómana, a música sempre esteve muito presente na minha vida. Não consigo recordar-me ao certo quando nem como fui introduzida a este mundo, mas guardo na memória o papel fulcral que o meu pai teve ao colocar-me a ouvir cada um dos seus discos vinil (Dire Straits, The Beatles, Phil Collins, Bryan Adams, etc: aqueles nomes que, passe o tempo que passar, vão ser sempre eternos). Ficava completamente deslumbrada a cada nova audição, lembro-me como se fosse ontem. Numa altura em que consumia, em quantidades elevadas, tanto música como cinema, memorizei um filme que teve um fortíssimo impacto na minha vida – isto no sentido em que intensificou a um nível extremo toda a minha relação com a música. Ainda hoje o guardo no meu coração, ainda hoje o considero um dos meus filmes favoritos de sempre, ainda hoje o recomendo a qualquer pessoa que cruze caminho comigo e estou a falar do Almost Famous (2000) de Cameron Crowe.

De facto, tudo começou com o rock, mas senti que tinha tanto que explorar neste mundo vasto que é a música que acabei por mergulhar em todos os géneros musicais, consumindo-os de uma forma desenfreada. Estagnei durante um tempo no mundo da pop (confesso!), mas posso dizer que embarquei numa belíssima viagem, com várias paragens, umas mais demoradas do que outras. Se nos dias que correm consigo ouvir e gostar de tudo um pouco, deve-se maioritariamente a este meu percurso, e isso é algo que me deixa genuinamente feliz.

Nesta fase, devem estar a questionar-se do porquê de eu estar a contar sobre o meu trajeto pelo mundo da música – e com razão. Ora bem, a minha intenção é mostrar-vos que, de facto, a música portuguesa nunca esteve muito presente na minha vida, pelo menos de forma regular. Nem sei bem a razão, na verdade. Mas tudo mudou nos meus tempos de faculdade, quando uma grande amiga, que levo literalmente para a vida, me pôs a ouvir música nacional (Rafaela, se estiveres a ler isto, obrigada!). Começou com B Fachada. Um fun fact é que fui vê-lo, pela primeira vez ao vivo, no sábado passado, no Festival Rádio Faneca em Ílhavo, e foi em pleno concerto que comecei a idealizar a introdução deste texto.

Mas prosseguindo: lembro-me de ouvir B Fachada e pensar “porque é que não dei atenção a isto mais cedo?”. Ora portanto, quase que como uma criança autêntica com um brinquedo novo, decidi entrar neste universo que me era até então (praticamente) desconhecido e explorar ao máximo todos os seus (re)cantos até me aperceber que era um caminho sem volta.

Estava a viver os melhores anos da minha vida até chegar março de 2020 (todos associamos este período ao mesmo acontecimento, certo?). Começou a pandemia. Uns lidaram melhor do que outros, mas a ansiedade, a frustração e o medo estava presente em cada um de nós, sejamos sinceros. Todos ficámos sem chão. Quando estava a entrar num autêntico abismo, algo me fez renascer, ganhar uma nova vida: um disco. Um disco português – ainda restam dúvidas que a música é mesmo capaz de salvar vidas?

No dia 27 de março de 2020, Cláudia Pascoal estreou-se em formato longa-duração com !, o disco que mais me acompanhou durante toda a pandemia, o disco que nunca me fez sentir sozinha, o disco que me fez acreditar que tudo iria eventualmente melhorar. Meses depois, tive a oportunidade de ouvi-lo ao vivo – na Covilhã – e, a sério, naquele momento estava tudo alinhado. Para além disso, ainda tive a oportunidade de entrevistar a Cláudia, em contexto académico, e – mais um fun fact – não só foi a primeira artista que entrevistei, como também foi a que me impulsionou a fazer o que faço hoje (e que faço com tanto prazer e amor). Portanto, obrigada Cláudia. E por estas razões, mais do que suficientes, não podia deixar de lado o seu segundo longa-duração, desta vez intitulado !!, editado no dia 19 de maio, que surge como prova que Cláudia Pascoal é uma das artistas mais criativas e versáteis no panorama musical português.

Em !!, Cláudia Pascoal – de coração dividido entre Gondomar e Arco de Baúlhe – explora e reinventa a sua cultura pop, abraçando de forma despretensiosa toda a herança e tradição marcadas por uma infância vivida no Minho. “Oh Cláudia, é impressão minha ou tu estás a ficar cada vez mais minhota?”, ouve-se dizer a humorista Joana Marques que dá o mote à intro do álbum, embora intitulada “Isto Não É Uma Intro”. Começamos então esta viagem rica em autenticidade fazendo-se ecoar “Eh Para A Frente, Eh Para Trás”, uma canção de força e de luta que não deixa ninguém parado (em qualquer sentido). Partindo das suas raízes e materializada na terra que viu Cláudia crescer, esta faixa adota a voz da sua avó Adelaide, a quem dedica a canção, relembrando os conselhos que tantas vezes ouvimos das nossas próprias matriarcas. “Precaução”, onde surge acompanhada por Manuela Azevedo (vocalista dos Clã), revela bem a influência de Rita Lee, delineando um esboço de mais uma canção lançada para se prender na cabeça do ouvinte. “Fado Chiclete” transparece uma escrita perspicaz, com referências fortes, trocadilhos divertidos e um sentido de humor refinado (não é para qualquer um, na verdade).

Cláudia Pascoal chama ainda Natalia Lacunza, numa colaboração épica, para nos entregar a miscelânea excêntrica de “Assim Assim” a soar futurista. “Pastel de Chaves” é um minuto de êxtase hyperpop e electrónica insólito, onde Cláudia sampla uma senhora a explicar como é que se faz o Pastel de Chaves. Em “Lugar I”, assume uma vulnerabilidade irreprimível – como nunca antes vimos – e traça um profundo, genuíno e transparente autorretrato sobre um amor verdadeiro, oferecendo um efeito de borboletas na barriga.

Logo de seguida, chega-nos “Nasci Maria”, o tema que Cláudia Pascoal levou este ano ao Festival da Canção. Uma ode à mulher e o melhor exemplo [do álbum] de irreverência e disruptividade no som, convidando-nos a tirar os pés do chão desde o primeiro ao último compasso num ambiente altamente festivo. Cláudia apresenta-nos ainda uma versão excitante e genial de “Eu Jogo Ténis” (original dos Miúda). Em “Lugar II”, explora um lado mais escuro do amor que narrou em “Lugar I”: soa tão honesto e tão profundo, quer na letra, quer na produção, que facilmente conseguimos absorver e sentir as mesmas frustrações. Em “Oh Mãe”, faz uma dedicatória comovente à mãe (Rosa Teixeira, que marca presença na faixa), acabando por culminar numa bonita homenagem a todas as mães. Segue-se uma viagem mais solitária e introspectiva com “A Música Que Fiz Na Quarentena”, seguida de um momento kitsch à la James Bond, ao lado de Marante, em “Onde Vais Amanhã”. Joana Marques volta a aparecer, desta vez para fechar o álbum, embora afirme que “Não É Assim Que Acaba O Álbum”.

“Era muito importante para mim que as canções não soassem todas iguais, quase como se viessem de álbuns diferentes. Mas acabam por pertencer ao mesmo sítio porque têm a mesma personalidade, a minha”, contava Cláudia em entrevista à Time Out Lisboa. De facto, são catorze canções que seguem diferentes direções, mas que resultam incrivelmente bem juntas. !! explora paisagens de som onde o passado, o presente e o futuro da pop coexistem, preenchidas por sonoridades ora electrónicas, ora tradicionais. No fundo, é extremamente difícil inserir a música de Cláudia Pascoal numa só caixinha e, na verdade, é aí que está o segredo. Com uma produção exuberante (props para o David Fonseca), !! é um álbum facilmente assimilável para quem anseia um pouco de diversão musical, e (mais do que) um passo em frente para Cláudia Pascoal que nos oferece uma das audições obrigatórias deste ano.

Nascida e criada em Aveiro, mas com a Covilhã sempre no coração, cidade que a acolheu durante os seus estudos superiores. Já passou pelo Gerador, e pelo Espalha-Factos, onde se tornou coautora da rubrica À Escuta. Uma melómana sem conserto, sempre com auscultadores nos ouvidos e a tentar ser jornalista.
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Irreverência e disruptividade no som.

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