A primeira vez que vi os Boogarins foi em 2019, no Vodafone Paredes de Coura. Lembro-me de, a poucos minutos do início do concerto, ver um enorme grupo de fãs a ocupar as primeiras filas, visivelmente extasiado. Na altura, não compreendi bem aquele entusiasmo, mas à priori, sabia que os Boogarins já eram uma das bandas “da casa” em Portugal. Naquele momento, o grupo goiano era celebrado pelas suas sonoridades viajadas e improvisadas, pelas suas letras abstratas e eternas digressões, como dizia o vocalista numa reportagem do Público da mesma edição do festival. No ano seguinte, chegou a pandemia – e essa eternidade nas estradas tornou-se efémera. Haveria regresso para uma banda que cresceu dentro do fluxo psicadélico moderno, ao estilo de Tame Impala ou MGMT? A resposta chegou com Bacuri, editado no final de novembro de 2024, agora com uma edição física a cargo da Lusofonia Record Club.
Passaram-se cinco anos desde Sombrou Dúvida (2019). Novas tendências sonoras no rock, como o pós-punk, ganharam espaço; o psicadélico perdeu força. E em 2024, os Boogarins regressaram com mais do que um novo disco: Bacuri marca um verdadeiro recomeço para a banda oriunda de Goiânia formada por Ynaiã Benthroldo (bateria e voz), Raphael Vaz (baixo, sintetizador e voz), Benke Ferraz (guitarra e voz) e Dinho Almeida (guitarra e voz).
A paragem forçada da pandemia trouxe um caminho impensável pelo grupo. O desacelerar do tempo e a redescoberta da sua independência e do significado de “casa” revelaram-se a fórmula ideal para criar algo completamente distinto daquilo que vinham a fazer. Bacuri soa a jantar de amigos que viraram família, um conjunto de canções cozinhadas a lume brando, como se seguissem uma receita de uma “comida de conforto”. Para cozinhar este disco, os Boogarins necessitaram da visão e da ajuda de Alejandra Luciani, engenheira de som e parceira de Raphael Vaz, que providenciou à banda um novo olhar perante a sua sonoridade genuína e orgânica. Entre histórias, filhos, e camaradagem, era preciso a banda reinventar-se para prosseguirem além da dúvida. É precisamente isso que os Boogarins apresentam em Bacuri.

Foi em São João da Madeira, mais concretamente no festival Party Sleep Repeat, onde estive à conversa com os Boogarins para falarmos sobre este renascimento enquanto banda e sobre a sua relação com Portugal.
Passaram de uma banda que compunha durante as digressões para gravarem Bacuri no sítio onde tudo começou para vocês enquanto banda: no quarto. O que mudou na vossa vida que levou a essa mudança?
[Benke Ferraz] Em primeiro lugar, a pandemia. Mas tínhamos a noção de que o próximo disco seria feito com engenheiros de som externos — não seria feito só por nós. Depois, surgiram também questões financeiras, já que deixamos de estar ligados a um selo.
[Dinho Almeida] A ideia nem era exatamente fazer algo caseiro, mas sim diferente. Como a gente já tinha feito muitos discos de estúdio, queríamos fazer um que oferecesse a sensação de banda ao vivo. Precisávamos de um processo que desse prazer: uma pausa nas turnês para tocar músicas que estávamos desenvolvendo no palco. Começamos a pré-produzir o disco, a escolher músicas… Quando a relação com a gravadora se encerrou e percebemos que as conversas com produtores gringos não iam acontecer, decidimos fazer o disco em casa. Chamamos a Alejandra Luciani, companheira do Raphael, porque a gente morava junto na mesma casa: eu, minha companheira, o Raphael e a Alejandra. Eles acabaram cedendo o quarto deles, que virou nossa sala de controle — o estúdio. Antes disso, ainda fizemos uma pré-produção na garagem da nossa vizinha. Esse processo levou uns três anos. Voltar a gravar no Brasil foi simbólico — não fazíamos isso desde o primeiro disco [As Plantas Que Curam (2013)]. Nessa altura, a gente gravava no quarto do Benke, depois das aulas do ensino médio. Voltamos a fazer as coisas para nós mesmos, sem obrigação de entregar um disco para uma gravadora. Era a gente fazendo um disco para lançar por conta própria.
[Benke] Essas músicas já vieram de um processo diferente. A gente não estava em turnê. A gente se encontrava durante a semana, ensaiava e tocava as músicas. Seis meses depois, gravamos as bases ao vivo. Isto durante três semanas seguidas. Meses depois, voltávamos para gravar as guitarras. Foi tudo bem espaçado, e isso só foi possível porque estávamos em casa. A Alejandra também pôde trabalhar nisso com calma. As músicas iam “cozinhando” na cabeça de todo mundo. Conseguimos trabalhar bem, respeitando o espaço de cada um, sem pressões externas. A única pressão era a nossa mesmo: “temos que terminar esse disco”.
[Dinho Almeida] Mas era uma pressão mais estilo “almoço de família” e menos “cozinha de restaurante”, que é a lógica de uma gravadora. Estava todo mundo com fome, a comida precisava de sair. Antes, a pressão vinha de fora.
[Raphael Vaz] Era qualquer coisa do “têm de acabar esse ano” ou “está atrasado o tempo”.
[Alejandra Luciani] Cozinhando a fogo lento, enquanto a família conversa.
[Benke] É muito isso. Foi a primeira vez que a gente pôde decidir, como banda, quando o disco estava pronto. Sem ter que esperar resposta de selo, ou retrabalhar música por exigência externa. O processo terminou mesmo no estúdio novo da nova casa do Raphael e da Alejandra. Foi lá que gravamos a voz do Ynaiã em “Bacuri” e fizemos a versão final. Curiosamente, até então nem sabíamos que a “Bacuri” faria parte do disco — nem o nome do álbum tínhamos ainda. Já tínhamos todas as outras músicas, mas essa surgiu no fim.
[Ynaiã Benthroldo] Durante nossos encontros, tentamos fazer uma nova versão de “Bacuri”, diferente da que eu tinha feito sozinho durante a pandemia. Foram dois anos assim, trabalhando nela.
Quais foram as vantagens que sentiram ao terem largado o contrato com a gravadora [OAR]?
[Dinho] Todas as vantagens do mundo. Era algo que a gente queria, mas não sabia exatamente como o fazer. Nesse disco, conseguimos viver isso de forma tranquila. Talvez, se tivesse acontecido antes da pandemia, não teríamos encarado da mesma forma.
Acredito que também fizessem pressão sobre a sonoridade.
[Benke] Sim, até o repertório era influenciado. Se a gente tivesse seguido a lógica da gravadora — trabalhar com produtor externo, por exemplo — teríamos que fazer mais músicas. Algumas das que estão no disco talvez nem entrassem, por não serem consideradas “fortes” ou “hits internacionais”, que é o que eles esperavam. Mas foi ótimo: praticamente todas as músicas que a gente começou na pré-produção entraram no álbum.
[Raphael] E o orçamento era nosso. Virou um assunto interno. Era a criança ganhando independência.
Este disco nasceu do vosso reencontro com a independência? Ou está mais ligado a terem crescido, formado família e regressado ao Brasil? Qual é, afinal, o conceito deste álbum?
[Benke] Acho que tudo o que você falou cabe muito bem no que a gente pensa.
[Raphael] É, e também teve esse lance de a gente querer desenvolver os arranjos como banda, devagarzinho — como ensaio, como demo, como banda de garagem mesmo. Isso era algo que a gente não fazia há um tempo. A desaceleração foi enorme. E nesse meio-tempo, os meninos viraram pais, surgiram novas responsabilidades. A gente passou a gerir o tempo de outro jeito. Ficamos quase dois anos sem tocar, e quando voltamos, percebemos que o público brasileiro estava com saudade. A banda cresceu, ficou mais madura, mais consciente do que faz. Hoje somos uma banda adulta que sabe o que quer fazer.
Mas olham para vocês como esse tipo de banda?
[Raphael] É uma impressão muito minha de adolescente de ter passado uma pandemia, e, de repente, percebe que não estava começando nada, mas que tinha feito uma porrada de coisas.
[Dinho] É muito sobre essa consolidação nossa como banda, que aconteceu durante a pandemia. Não foi depois de um show, foi depois de um vácuo. Demoramos um pouco a voltar. Tivemos show no fim de 2021 para 2022, e o disco só saiu no fim de 2024. Mesmo assim, ficou essa ideia de a gente estar voltando, mas sendo vistos como essa banda experiente, independente, que o público gosta, que tem história.
[Raphael] Nesse tempo, lançamos duas coletâneas: Manchaca (Vol. 1 & 2) (2020). Era praticamente tudo que a gente tinha. Eram canções pelas quais tínhamos tanto carinho e que ainda pensámos em poli-las para este novo disco. Mas percebemos que a gente também amava aquelas músicas do jeito que elas eram
[Dinho] Isso fez com que a gente começasse Bacuri do zero mesmo. E voltando ao que você perguntou: sim, tem essa coisa de construir uma nova casa, de a banda estar com outra cabeça. Todos nós ficamos mergulhados numa vida adulta, diferente daquela loucura pré-pandemia, quando passávamos mais de seis meses por ano fora de casa. Bacuri é um começo individual e coletivo novo.
O que define esse novo começo dos Boogarins?
[Ynaiã] A maturidade. A gente passou muito tempo na estrada. Tem bandas no Brasil, claro, mas não sei se muitas fizeram tantos shows e passaram tanto tempo longe de casa como a gente.
[Dinho] A gente já viveu muita coisa, mas ainda existe a amizade, a vontade de fazer algo novo e de experimentar. Isso é o que é novo. E o disco fala isso sozinho. Ele tem a sonoridade do que são os Boogarins ao longo dos anos, mas ainda assim soa diferente. Pode ser pela influência da Alejandra, pelo nosso momento como pais, ou pelo facto de cada um trazer uma música que depois trabalhamos juntos. É uma banda experiente fazendo algo novo com tudo o que sabe.
[Benke] Isso se reflete muito no som. Não é que os membros do Boogarins tenham mudado radicalmente, mas parece que cada disco é um renascimento. Todos foram feitos de forma diferente. E é doido — a gente reencontrou agora o nosso primeiro baterista [Hans Castro], que gravou ainda o Manual Ou Guia Livre De Dissolução Dos Sonhos (2015) com a gente. Lembrei que Lá Vem A Morte (2017) foi o primeiro disco em que o Ynaiã gravou a bateria com a gente. Ele já estava com a gente desde a turnê de As Plantas Que Curam, quando o Hans Castro saiu em setembro de 2014. O Ynaiã fez um ano inteiro de turnê do primeiro disco e mais dois anos de Manual. Só depois de quatro anos com a banda na estrada, é que ele gravou o primeiro disco completo com a gente. E aí percebo: Lá Vem a Morte também foi um disco caseiro, mas feito nos EUA. Ou seja, fazer um disco em casa não é novo para a gente. Mas fazer em casa no Brasil, em família… Conceitos falados em discos anteriores viram novidade novamente para a gente porque o contexto vai mudando muito.
[Ynaiã] Ao mesmo tempo, Bacuri foi feito como o primeiro disco de há 10 anos. São os meninos em casa.
[Dinho] Com certeza. Bacuri expande essa ideia do que é “gravação caseira”, do que é “casa”. Porque isso tudo aconteceu — felizmente ou infelizmente — com a nossa vida, no momento em que a gente mergulhou de cabeça nessa coisa de ter banda.
[Benke] Esse disco é caseiro, sim, mas é mais hi-fi. Não é como se encaixasse com o mesmo caseiro que é o primeiro.
[Dinho] São três tipos de casa. O importante é ter onde morar [risos].


Li que vocês tentaram contactar o Brian Eno para produzir o vosso disco. Isso é verdade? O que é que aconteceu?
[Dinho] Sim, existe esse email em que foi levantada a ideia de falarmos com o Brian Eno.
[Raphael] Foi a gravadora que levantou essa ideia.
[Benke] Isso surgiu muito antes de Bacuri existir. Eram demos que mandamos para a gravadora, e eles enviaram para equipe do Brian Eno. Na época, falaram também com outros produtores. A gente não chegou a conversar diretamente com ele, mas o nome do Eno acabou virando meio que símbolo de como o processo foi pensado.
[Raphael] Mandamos música, recebemos um número que disseram ser o WhatsApp dele, mas ele nunca respondeu. E parece que a metodologia de produção dele era uma coisa meio aleatória — tipo tirar cartas e tomar decisões com base nisso.
Essa ideia foi discutida em que ano?
[Benke] Foi de 2019 para 2020, algum tempo depois de lançarmos o Sombrou Dúvida. Se não fosse a pandemia, provavelmente nessa altura estaríamos em turnê, e o disco teria saído dentro dessa lógica, talvez até gravado com algum desses nomes durante a estadia nos EUA. Estávamos no fim da turnê americana e cogitamos aproveitar o embalo. Foram mencionados vários nomes. Um deles foi o Adrian Quesada, guitarrista e produtor dos Black Pumas — já tínhamos gravado coisas para o disco solo dele, mas acabou não indo para a frente. Como ele é de Austin, cidade onde moramos por um tempo, ele já nos conhecia. Outro nome foi o Mário Caldato Jr., produtor brasileiro que trabalhou com os Beastie Boys, Beck e Seu Jorge. Sentamos com ele, sim, mas todos esses orçamentos eram acima de cinco dígitos. Era uma proposta de “novo passo” com essa gravadora com quem já trabalhávamos, mas que envolvia um investimento enorme — que acabaria por nos deixar atrelados demais. Isso é o básico de qualquer contrato com uma label grande. Então, sair disso tudo foi, na verdade, uma postura mais racional para a gente. A gente passou a entender melhor o tamanho real da banda, o tipo de grana que ela movimenta, o que faz sentido para lançar música nova — sem achar que isso tem de vir obrigatoriamente com estratégia de marketing caríssima, videoclipes com roteiro, identidade visual, etc. Uma vez com as músicas prontas, era só lançar. O disco acabou parecendo algo que representava o passo natural de uma banda sem contrato com gravadora — mas ainda assim num patamar maior. Tudo que fazemos hoje vem de uma decisão consciente de não estar atrelado a essas grandes estruturas familiares do showbiz. E quando você envolve pessoas que estão confortáveis com o que cada uma faz, tudo vira conceito. Esse também é o primeiro disco em que todo mundo canta. Parece o manual da formação atual para o nosso disco mais “ao vivo”.
Sentem que com este disco conseguiram alcançar uma gestão e produção independente?
[Ynaiã] A banda tem de ser o mais autogerida possível. Especialmente bandas que vêm de lugares sem muito investimento, ou que fazem um som que não é o popular na sua cidade, no seu país. A gente tem de convencer as pessoas, criar parcerias para fazer as coisas acontecerem. Acho que essa sempre foi a nossa escola: montar uma banda, tocar na cidade, chamar a banda do amigo para dividir a noite… e daí as coisas vão rolando. O Boogarins, aliás, foi uma das últimas bandas que conseguiu aproveitar a fase mais orgânica da internet. O Benke, por exemplo, conseguiu se conectar com gente de fora para distribuir nossa música e criar pontes. Essa lógica de autogestão sempre esteve com a gente. Ter um parceiro forte fez com que a gente estruturasse a banda a ponto de poder gravar, pagar o nosso disco, clipe, assessoria de imprensa, fazer vinil, vender vinil. Se depois de tantos discos, tantas turnês, ainda conseguimos tocar para um público novo, isso para mim é sucesso. Acho que já dá até para dar um curso de MBA [Master of Business Administration]. [Risos]
Vocês são conhecidos por fazerem os discos em formato de improviso. Em Bacuri, mantiveram-se fieis a esse método ou houve mais reflexão?
[Dinho] Nos discos anteriores, a gente pegava em jams e, a partir disso, criava o disco. Já em Bacuri, cada um trouxe uma música. As jams até aconteceram, mas serviram como base para arranjos que foram trabalhados e, depois, regravados como canções mais definidas. Quando você ouvir o show, vai sentir a mesma energia da banda, mas com menos improviso e mais arranjo. Antes, os arranjos viravam improvisos ao vivo porque não conseguimos reproduzir o que tinha muita pós-produção. Agora, os improvisos viraram arranjos sólidos.
Isso aconteceu porque a pandemia separou-vos e deixou-vos isolados. Foram obrigados a compor sozinhos.
[Raphael] Mas quando estávamos em turnê tocávamos a mesma música de mil formas diferentes.
[Dinho] Querendo ou não, a culpa também é um pouco da gravadora. O Lá Vem a Morte e o Sombrou Dúvida têm canções que não precisavam ter terminado como terminaram, mas foram finalizadas daquela forma porque só tínhamos aquele tempo de estúdio para gravar.
Não só a produção do disco mudou como as vossas letras comunicam mais claramente com o público. Quando é que se aperceberam que queriam passar uma mensagem mais clara e porquê?
[Dinho] Acho que é como falei antes — foi o desejo de fazer diferente. Não se acomodar com o jeito antigo de compor. Isso acabou sendo natural. Pode até não parecer tão claro assim, mas o facto de termos tido mais tempo para cantar, ouvir as canções várias vezes, ajudou [risos] Nos outros discos era meio: “cantou, ficou”. Agora houve espaço para lapidar.
[Benke] Este disco recupera algo que talvez só existia em As Plantas Que Curam, que é trazer a música para o grupo e, juntos, discutirmos letra e arranjos. Isso só aconteceu porque a nossa relação de amizade chegou a um ponto em que isso se tornou possível.

A faixa “Chrystian & Ralf” faz alusão à vossa maior referência sertaneja de Goiânia. Essa homenagem já estava pensada desde o início?
[Benke] Sim. A ideia começou até como uma viagem de talvez chamar eles para cantar com a gente. Eles eram uma dupla sertaneja com uma pegada roqueira e tinham muito respeito, mesmo entre quem não curtia sertanejo. A gente nunca teve um feature, nunca aconteceu. Não é por falta de vontade, mas também não queremos ser insistentes. Infelizmente, quase sempre que tentamos trabalhar com artistas que não são amigos próximos, as colaborações acabam por não acontecer. Mas tivemos uma experiência muito boa recentemente com o Toninho Horta, que fez parte do álbum Clube da Esquina (1972), e isso nos deixou ainda mais empolgados para explorar esse repertório. Quanto ao título “Chrystian & Ralf”, o Chrystian faleceu no fim do ano passado, e estávamos justamente a pensar em nomes para o disco. Então, foi uma espécie de homenagem. Seria lindo se eles tivessem cantado com a gente um dia. Ainda tem o Ralf. Vamos ver…
[Dinho] Não tem como não ser para Goiânia. Eu não nasci lá, mas foi lá que cresci e criei uma banda. O Ynaiã também não nasceu lá, mas desde a outra banda em que tocava, aprendeu a ser artista em Goiânia. Ser banda independente lá é diferente. Se fores ouvir Carne Doce ou qualquer outra banda nova de lá, vais perceber: é um som diferente do rock alternativo de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Goiânia tem uma coisa própria — e isso está no disco, sim. Esse som que chamam de “rock Boogarins” fica mais evidente agora. É uma mistura difícil de explicar — algo entre o Clube da Esquina, mas ainda muito rock. A gente acabou encaixado na cena psicadélica moderna dos anos 2010, tipo Tame Impala ou Black Pumas, mas com raízes no rock de garagem goiano.
Falando do Clube da Esquina, foi um álbum que tocaram e ensaiaram bastante no pós pandemia. Isso influenciou Bacuri de alguma forma?
[Dinho] Com certeza. Foram shows que fizeram todo o mundo tocar melhor em conjunto coisas novas. A gente precisava disso para conseguir fazer esses shows, porque ficou muito tempo tocando outras músicas.
A sensação de casa também aparece em projetos paralelos como o BABYMONSTER (2023) do Benke. A exploração eletrónica e samples caseiros influenciaram também Bacuri?
[Benke] Esse projeto apareceu numa altura em que não tinha nada para fazer de edição e produção. Basicamente, estava gastando um pouco de energia e deixando a Alejandra cuidar de tudo [risos] Estou tentando lembrar as músicas do BABYMONSTER, mas acho que todas elas são muito brincadeiras, não era nada que estaria no disco.
Ao longo do disco utilizam algumas vezes a expressão “lá fora”. Por acaso, representa o tédio das turnês e a vontade de regressar a casa?
[Benke] Por exemplo, a “Me Dê um Som”.
[Dinho] O inconsciente grita. Não sei se dá para dizer que é só isso, mas aprendemos a gostar mais de estar em casa. Isso veio com a pandemia. Em “Me Dê um Som”, o “lá de fora” vem de dentro de você. A gente passou de uma fase de turnês malucas para este momento mais introspectivo. E aí bate a pergunta: quem sou eu agora?
[Raphael] Em “Amor de Indie” também não falamos exatamente da turnê, mas do turbilhão de coisas que aconteciam enquanto estávamos no nosso casulo. Avanço tecnológico, Brasil caótico, uma avalanche de acontecimentos. É uma canção sobre envelhecer e encontrar um lugar mais acolhedor.
Em 2015, a editora Lovers & Lollypops lançou dois discos intitulados Fuzz She Said. No segundo volume estavam os Cave Story, os Sunflowers e os Boogarins. Como surgiu o convite para participarem neste projeto?
[Benke] A Lovers trabalha com a gente desde que viemos pela primeira vez à Europa. O nosso primeiro show em Portugal foi no Milhões de Festa [festival organizado pela editora] e foi um show bem marcante. Depois de estarmos tocando durante quatro meses por toda a Europa — shows legais, shows não tão legais também, com uma galera gringa que não falava nada — chegamos a Barcelos meio um pouco desmotivados, porque estávamos há muito tempo falando outra língua, vendo que ninguém cantava as nossas músicas, sentindo que estávamos virando uma banda cada vez mais instrumental. Começamos a tocar canções que por acaso não tocávamos muito para os gringos, e vimos a galera cantando. Foi uma parada que deu um gás, numa altura em que você já nem sabia quem você era mais — 20 anos, fora de casa pela primeira vez, quatro meses tocando ali sem parar, um monte de expectativa, dívida de gravadoras… Depois a gente toca no Musicbox no dia seguinte, e voltamos a ver a galera cantando muito bravo. Desde então que voltamos todos os anos a Portugal.
Mas, relativamente ao Fuzz She Said, limitaram-se a entregar as gravações para serem incluídas no disco?
[Benke] Sim, foi uma ideia deles.
E não chegaram a contactar diretamente nenhum dos outros artistas?
[Dinho] Tocámos com eles no Maus Hábitos. Chegámos a conversar com os meninos. Não me lembro bem. Lembro-me dos Sensible Soccers, que não estavam no volume, mas havia uma sequência de artistas que tocavam a mesma linguagem e que era muito compatível. Era legal ver esse abraço a uma banda brasileira. Para mim, sempre foi confuso entender se os músicos portugueses gostavam de nós.
Há algum artista ou projeto português que gostassem de trabalhar ou tocar em conjunto?
[Dinho] A Maria Reis e as Pega Monstro sempre foram dois projetos que eu achei muito fantástico.
E o Benke produziu o álbum Pisaduras do Hélio Morais. Qual é a tua relação com ele?
[Benke] Acho que o primeiro contato foi no MIL, em Lisboa. Eles estavam fazendo alguma residência artística e nos convidaram. Era um lance de gravação com o celular que a gente já fazia no Brasil, mas pela primeira vez eles queriam que fizéssemos também colaborações com artistas. Um desses artistas era a banda Paus, uma das bandas do Hélio, Capitão Fausto e o Legendary Tigerman — o primeiro cara de Portugal que falou com a gente e nos abraçou. Acho que o primeiro show que a gente fez no Musicbox era até a noite dele.
[Dinho] Ele foi uma vez tocar em Goiânia, num festival que eu estava trabalhando de roadie, e um amigo goiano me apresentou. Ele foi muito gentil e ainda mantenho contato com ele. Voltando à pergunta, eu também cantei uma música no disco dos Paus quando eles foram para o Brasil.
Qual foi a música?
[Dinho] “Corpo Sem Margem”.
[Benke] Eles fizeram um disco produzido lá no Brasil, LXSP (2019), que teve a participação do Guilherme Kastrup. Essa colaboração aconteceu depois do MIL. Eles foram para São Paulo e chamaram o Dinho para cantar uma das músicas.
Falaram na sensação de serem abraçados pelos artistas portugueses. Acham que está a crescer uma ponte entre Portugal e o Brasil?
[Dinho] Sempre houve. No nosso caso, como aparecemos na fase do hype das bandas psicodélicas, a galera pegava o Capitão Fausto como representante disso. Mas acho que a gente acabou se conectando mais com as bandas de garagem, como por exemplo os Linda Martini, e bandas que vêm desse lugar mais do pós-rock e psicadélico mais intenso. Mas impressiona que a gente seja bem recebido e torcemos sempre, por exemplo, pela Sophia Chablau que já veio a Portugal, ou os Tangolo Mangos, uma banda da Bahia muito boa que vem agora fazer turnê. A gente sempre torceu por todas as bandas novas para conseguirem fazer as coisas. Sabemos da dificuldade, porque viemos também desse cenário de banda independente, que não é dos grandes centros, que conseguiu fazer essas viagens. Acho que enriquece muito as bandas haver esse tipo de troca. E vocês aí em Portugal têm uma troca que incentiva. Mas acho que a relação entre Portugal e o Brasil podia ser melhor. Não sei se é porque o brasileiro tem menos inserção da cultura portuguesa. Portugal é inundado desde as novelas da Globo, por exemplo. Vocês são inundados. O brasileiro não recebe a mensagem dos portugueses, e é até muito hostil. Acho que vocês aí têm um contato com a cultura de Angola, de Cabo Verde e de Moçambique. A ideia de entender a diáspora africana tem vindo com mais força. Espero que também aconteça com o Brasil. Mas as coisas estão ficando melhores. Tudo mais claro e com mais contato com literatura. Essa coisa de Portugal ter sido outrora esse grande reino forçou todo mundo a falar a mesma língua, devemos usar isso para que seja um grande canal de cultura e de troca de ideias.
[Raphael] Vai chegar o Fado Safado no Brasil [risos].
Ainda sobre ligações transatlânticas: o vosso disco está agora disponível em vinil graças à parceria com a Lusofonia Record Club. Como surgiu essa oportunidade? Já conheciam os responsáveis?
[Ynaiã] Já conhecia o Léo Motta. Ele morava em Santa Catarina e produzia shows lá. Fui tocar lá umas duas vezes com ele e o outro parceiro dele da altura. Quando estávamos a combinar as coisas para a edição física, vi o e-mail e reconheci logo o cara.
Essa parceria serve para que os discos sejam distribuídos na Europa?
[Ynaiã] Isso. Porque os discos para o Brasil estão sendo produzidos e distribuídos lá por outra empresa. Pareceu uma parceria boa, principalmente porque vínhamos tocar aqui também. Aproveitamos esse lançamento do disco, que ainda está fresco, e empurra mais essas coisas das vendas e alcança mais pessoas. Tomara que eles [Lusofonia Record Club] consigam fazer isso com mais artistas brasileiros novos.
Há pouco mencionaram os Tangolo Mangos, e por acaso, falei com o Felipe Vaqueiro e ele contou-me algumas curiosidades sobre vocês.
[Dinho] Ele é louco [risos]. Ele apareceu num show nosso depois da prova do ENEM [Exame Nacional do Ensino Médio] para eu assinar a prova dele. Depois, ele mandou-me uma foto no Instagram, que era um poster que tinha assinado para ele falando: faz música. Depois respondeu: “estou a fazer música, ouve aqui o meu EP”.


Vocês têm no Bandcamp um disco chamado #FEFEL2020. Que disco é esse?
[Dinho] Era aquela eleição horrível no Brasil, e o hashtag tinha provavelmente a ver com o Bolsonaro 2020.
[Ynaiã] Era uma campanha grande para lançar o Raphael como presidente.
[Benke] O Fefel [Raphael Vaz] é de uma cidade de 20 mil habitantes no interior de Goiás, interior do Brasil. E quando estávamos voltando da turnê nos EUA, pensamos como seria o prestígio que ele poderia ter na sua cidade. E não foi pequeno. Ele podia até ser candidato.
[Raphael] Tinha a vontade de ser prefeito, mas escolhi outra coisa. Talvez volte lá. Teve um projeto de um filme documentário, que a gente pensou em fazer. Teve alguns textos, e a criação de uma figura mediática, um líder que ia guiar o seu povo e juntar todas as trilhas. Lá no Brasil, parece que qualquer pessoa podia se candidatar para presidente de qualquer coisa, e até meu nome foi bastante falado nas portas dos shows.
[Dinho] Fefel para presidente.
[Benke] Com a pandemia, a gente pegou as músicas do Fefel para fazer o compacto.
[Dinho] A gente goza que ele foi maltratado pela pandemia, porque íamos fazer até um show no SESC lançando o compacto.
[Raphael] Podia ter tido uma liderança jovem, mas não sou mais jovem.
[Dinho] A pandemia fez nossa liderança jovem se tornar um ancestral. Felipe Vaqueiro, que cara safado.
Benke, no teu Instagram ficaste viral com uns vídeos onde ias passando algumas músicas à frente porque simplesmente não gostavas. Passarias alguma música dos Boogarins?
[Benke] É a minha banda predileta.
[Ynaiã] A única banda que eu escuto tudo é essa.
[Benke] “Canção Perdida” do As Plantas Que Curam. Foi a faixa que foi inventada pelo empresário para encher o inglês ali no disco. Inicialmente, a gente tinha lançado o disco como um EP só para nós, até porque a última faixa seria a “Fim”. Quando a gravadora entrou em contato, ela queria que a gente pegasse outras gravações para fazer um LP. Colocamos a “Doce”, por exemplo. Só que acabou ficando na mão do bicho que tinha meio que descoberto também. O que era mais bonito da música não dá para ouvir, que é a guitarra que faz a melodia. Acabou por ficar muito baixo.
[Raphael] Um mau acordo com os americanos.
[Benke] Mais um mau acordo com os americanos. Enfim, mas essa eu passo. Eu escuto todas as minhas músicas. Até as ruins eu escuto como um momento de crescimento pessoal.
Fotografia de destaque: Inês Aleixo