Adeus, Musicbox. Olá, Casa Capitão.

Nas ruas, o rumor já circulava. Para alguns, o lance já era sabido, comunicado entre copos e linhas numa noite qualquer no interior do número 24 da Rua Nova do Carvalho (mais conhecida como Rua Cor de Rosa). Para (muitos) outros, o anúncio apareceu de surpresa, em mais uma machadada dada ao tecido cultural da música ao vivo lisboeta. De qualquer forma, é mesmo verdade: na próxima segunda-feira, 15 de setembro, o Musicbox irá encerrar portas e toda a equipa irá transitar para a nova versão da Casa Capitão.

Os dias seguintes após a proclamação do fecho de forma oficiosa pela NiT a meio de agosto funcionaram como o post-mortem. Ainda antes do comunicado oficial da sala lisboeta, já as publicações emotivas apareciam pelas redes sociais. Já se chorava o desaparecimento de outro espaço dedicado à música ao vivo na cidade de Lisboa, já se culpava a Câmara Municipal e o executivo liderado por Carlos Moedas pelo fecho. Enunciou-se rapidamente que o acontecimento era mais um capítulo da história que conta a morte de Lisboa. O problema dessas afirmações é que o encerramento do Musicbox não é um sinal de que Lisboa está a morrer. Pelo contrário, é um sinal de que a cidade já morreu há muito. Estamos já na fase da profanação do cadáver. Contudo, se nada se perde e tudo se transforma, o que se segue para o tecido da música ao vivo lisboeta?

No caso da presença de música ao vivo (original, esclareça-se) na Rua Cor de Rosa, a resposta é a seguinte: provavelmente, não existe um próximo capítulo. A Pensão Amor, o Liverpool ou o Pink Wine Point vão continuar, com certeza, a prosperar enquanto espaço noturnos. Contudo, se quisermos falar da existência de espaços onde se escuta e se dança com o som de música original tocada ao vivo? Não vai dar para discutir porque desapareceram.

Se antes da pandemia se localizavam na Pink Street quase uma mão cheia de salas, neste momento resta apenas uma (se é que a podemos tratar sequer como uma sala inteira): o “novo” Roterdão, que reabriu em 2015. O Tokyo e o Jamaica mudaram-se para as imediações do B.Leza e do Titanic Sur Mer, mais perto do rio Tejo. O Copenhaga já praticamente não recebe concertos. O Sabotage, nas proximidades, encerrou as portas em 2020, para dar lugar a um hotel. Ligeiramente mais distante que o Sabotage, mas também nas proximidades da Rua Cor de Rosa, o Lounge encerrou as portas em 2024. A sala LISA, apesar de alguma programação interessante, não tem atingido o potencial prometido. A Rua das Gaivotas 6 não é para todos. A Galeria Zé dos Bois é o que sabemos que é (tão “necessária” quanto exploratória e precária). Como interpretar a pintura deste cenário moribundo?

 

O microcosmos do Cais do Sodré é um exemplo interessante de como o fenómeno de dinamização cultural e gentrificação podem ocorrer de mãos dadas. Em dezembro de 2006, quando Alex Cortez (dos Rádio Macau) e Gonçalo Riscado abriram as portas do Musicbox – o sucessor do Texas Bar no número 24 da Rua Nova do Carvalho –, o Cais do Sodré não era o destino predileto da “noite” de Lisboa. Longe disso. O aparecimento de salas como o Musicbox transformou o Cais no que é hoje. A dinamização da noite que estes bares e salas de concertos trouxeram a uma zona que, outrora, se encontrava muito associada à prostituição e ao tráfico de droga, provocou, sem dúvida, um rejuvenescimento da área.

Contudo, apesar desse lado positivo da moeda, as mudanças que ocorreram nos anos seguintes foram o projeto piloto do que se aplicaria ao resto da cidade. Após uma breve experimentação em 2011, em 2013 consolidou-se a ideia da Pink Street – Rua Cor de Rosa -, que passou a ser o novo “apelido” da Rua Nova do Carvalho. Pintou-se a avenida de rosa, apelou-se aos turistas, e até o patrocínio de uma marca de Vodka (a Absolut) esteve envolvido nesta intervenção urbana. A criação da Pink Street enquanto ex-libris da cultura noturna lisboeta foi um dos primeiros indícios de que Lisboa estava prestes a ser vendida ao desbarato e a transformar-se num parque de diversões a céu aberto alimentado por Vistos Gold e turismo financeiro. Os resultados estão agora à vista.

É preciso notar que, ao contrário do encerramento de salas como o Lounge ou o Sabotage, o fecho do Musicbox não ocorre por pressão imobiliária. O encerramento do Musicbox é uma decisão por parte da Cultural Trend Lisbon (CTL), proprietária do espaço, com o intuito de se focar no seu novo empreendimento: a rejuvenescida Casa Capitão, que (re)abre as portas na próxima sexta-feira (19). A CTL admite no comunicado publicado nas redes sociais do Musicbox que, até “há pouco tempo”, acreditavam que “seria possível manter os dois projetos, mas tal não aconteceu”. Com o foco na Casa Capitão, a CTL acabou por escolher encerrar e vender o Musicbox a “comerciantes da zona” com “atividade local” que irão continuar a utilizar o local como  “espaço de dança ou um bar”, afirmou Gonçalo Riscado ao Observador.

Como se costuma dizer no poker, a Casa Capitão é o all-in da CTL. Localizada no Beato (Innovation District), a “nova” Casa Capitão, que esteve encerrada para obras desde 2021, é um empreendimento arrojado e custoso. No Público, pode-se ler sobre a envergadura deste investimento. A Casa Capitão vai ser um espaço que “ocupa quatro andares e tem várias áreas dedicadas à programação cultural, à restauração e ao lazer, com espaços que acolhem entre 30 e 500 pessoas” (a lotação do Musicbox cabe nesse intervalo de valores) e que pretende assumir-se como um “projeto de longa duração”, capaz de servir as necessidades do circuito artístico lisboeta. Contudo, será mesmo possível servir esse circuito a partir do “novo” Beato?

A gentrificação do Beato, para o qual a Casa Capitão poderá contribuir – quer a CTL queira ou não –, não é um processo em nada diferente daquele que assolou o Cais do Sodré – e depois o resto do centro de Lisboa – nas duas últimas décadas. A lengalenga é a mesma. O Beato Innovation District é a representação mais fiel dessa “nova” Lisboa. Uma Lisboa vendida ao desbarato, sem identidade, gentrificada, que não pertence aos lisboetas (alguma vez pertenceu?), que vê na periferia outra oportunidade de negócio e especulação. Uma Lisboa cujo único dono é o capital especulativo – imobiliário, cultural, social – higienizado, construído à imagem da periferia servida à moda de – neste caso – Carlos Moedas e companhia. É preciso assinalar que este processo não começou com Carlos Moedas (os executivos liderados por Fernando Medina e António Costa também contribuíram para isto), mas o seu executivo não se poupou ao aceleracionismo com eventos como o Tribeca Festival Lisboa ou a alocação de fundos públicos para acontecimentos como a Jornada Mundial da Juventude ou a Web Summit.

Acredito que a CTL está ciente dos desafios que será “trocar” o Musicbox pela Casa Capitão. Espero, no entanto, que esteja também ciente de que este pode ser um momento de recomeço para algumas das políticas que a “casa” adotou nos últimos anos no Musicbox. Apesar da importância do espaço para o circuito alternativo – do “underground” até aos projetos mais de nicho das multinacionais –, tocar no Musicbox nos últimos tempos não era o mesmo sinal de excitação de outrora.

É sabido nas ruas que as condições oferecidas pelo Musicbox a muitos artistas que por lá passaram – em particular, os nacionais – não eram as melhores. Cachê baixo ou totalmente ausente, pagamentos acrescentados por técnicos de som e de luz, ausência de backline, deslocações, jantar e dormida a não serem asseguradas. Se a Casa Capitão oferecer melhores condições aos artistas nacionais que por lá passarem, pode funcionar como um reset para um circuito que passou a coabitar e a aceitar muitos destes vícios como “normais” – vícios que só aumentam a precariedade da “cena”.

Além disso, é preciso refletir sobre o que significa ir tocar ao Beato neste momento. Que tipo de público se desloca até ao Beato para concertos? Lá no fundo, sabemos a resposta a essa pergunta (um público mais elitista, estrangeiro e endinheirado), mas não a queremos dizer em voz alta. Mais uma vez, a conversa da gentrificação bate à porta. E atualmente, grande parte da música ao vivo que ocorre no Beato ocorre em espaços onde não se paga para entrar, como é o caso da Musa de Marvila. Portanto, a Casa Capitão irá aparecer num ecossistema onde se terá de evidenciar pela força da qualidade e consistência da sua programação – e a chave poderá estar nos artistas internacionais que o espaço conseguirá trazer a Lisboa devido à capacidade financeira atual da CTL. A presença até ao final do ano de nomes como Destroyer ou Water From Your Eyes na programação do espaço já é um sinal dessa consciência.

Contudo, mesmo que a programação da Casa Capitão seja mais preenchida por concertos internacionais, o grande núcleo dos concertos do espaço continuará a ser de artistas que vivem em solo nacional – como é o exemplo de RAY, Esteves Sem Metafísica, ou Afonso Rodrigues, que fazem parte da programação do espaço até ao final do ano – e pelo clubbing, o verdadeiro símbolo de estatuto (e rentabilidade) do Musicbox na noite lisboeta. Ao olharmos para estes dois tópicos, aguardam-se desafios distintos e interessantes para a equipa da CTL.

No primeiro caso, a Casa Capitão poderá sofrer do mesmo problema que impactou o Musicbox nos últimos anos: incapacidade de fidelizar público e de se tornar num espaço comunitário para a “cena” musical lisboeta. Se no caso do Musicbox isso já foi difícil de fazer acontecer estando num sítio relativamente central, no Beato poderá revelar-se um desafio mais complicado – mas cujos frutos, em caso de sucesso, poderão ser maiores do que alguma vez poderiam ser com o Musicbox.

No segundo caso, a questão é outra. Afinal, o Beato não é o sítio de mais fácil acesso para muito público. Os acessos não são os mais diretos para o mais comum alfacinha e as melhorias nos transportes públicos para o Beato são imperativas para a possibilidade de sucesso de qualquer projeto que nasça na área. Além disso, no Beato a Casa Capitão não irá beneficiar de transeuntes aleatórios, cruciais ao negócio de qualquer espaço de música e dança ao vivo – como ocorreu durante anos com a localização benéfica do Musicbox na Rua Cor de Rosa. E quanto tempo terá a CTL para encontrar respostas ao seu investimento? A estagnação depois da novidade é possível, mas com certeza a equipa da produtora cultural saberá disso. A experiência é muita. As respostas a estas questões não são imediatas nem concretas, mas a seu tempo, irão certamente aparecer.

Todavia, qualquer coisa negativa que se possa dizer  do Musicbox  não apaga as noites que eu e tantos outros vivemos no interior do espaço ao longo das últimas quase duas décadas. Foi o local onde assisti ao meu primeiro concerto em Lisboa – uma noite com Chinaskee & Os Camponeses e The Miami Flu, em março de 2017 –, onde marquei o primeiro concerto de uma banda (Dispirited Spirits + Calmness), onde falei pela primeira vez na rádio (para o concerto que celebrou um ano de Gótico Português dos Glockenwise), e onde vivi concertos que não esqueço ao lado de tantos amigos queridos. Penso em Boogarins, David Bruno, Conjunto Corona, Linda Martini, Sophia Chablau E Uma Enorme Perda de Tempo, Ana Frango Elétrico. Há outros tantos concertos que assisti no Musicbox dos quais não me lembro, e outros tantos que gostava de ter vivido. Afinal, o Musicbox faz parte da história da celebração de editoras como a FlorCaveira ou a Cuca Monga, que tiveram profundo impacto nas duas últimas décadas da música portuguesa e da canção portuguesa.

O encerramento do Musicbox encerra um ciclo para a música ao vivo em Lisboa, mas poderá abrir um novo. Não tenho particular crença de que esse novo capítulo possa começar no Beato (talvez seja demasiado um pulha cínico), mas talvez me engane. Porém, o que este desfecho nos oferece é, mais uma vez, uma oportunidade para um novo ponto de partida. É necessário olhar para este momento não como um momento de choro ou como um momento que nos fará ficarmos presos à eterna nostalgia de um local – como acontece, por exemplo, com o Sabotage.

Ao invés, devemos olhar para este instante a partir de um prisma onde é necessário entender que o circuito alternativo e o underground – das editoras aos músicos – se devem unir na experimentação. É necessário que surjam novos espaços comunitários que pretendem oferecer uma alternativa a estes que fecharam a partir de uma matriz inclusiva e onde seja possível, acima de tudo, conviver, tocar e experimentar. São precisos sítios como as Damas, a Disgraça ou a Sala 6 (no Barreiro). Se não existirem esses locais, onde irão começar a tocar as futuras grandes bandas do país?

O Musicbox encerra esta segunda-feira com uma festa contínua de DJ sets que começa pelas 17h de domingo (14). A entrada é grátis e o programa pode ser consultado aqui.

A Casa Capitão reabre em setembro com três dias de programação diurna e noturna de acesso gratuito. Inclui concertos de artistas como Conferência Inferno, Vaiapraia, Luca Argel, Hause Plants, ou CapicuaPodes consultar a agenda de programação da Casa Capitão para os próximos meses aqui.

Cucujanense de gema, lisboeta por necessidade. Concluiu um curso de engenharia, mas lá se lembrou que era no jornalismo musical e na comunicação onde estava a sua vocação. Escreveu no Bandcamp Daily, Stereogum, The Guardian, Comunidade Cultura e Arte, Shifter, A Cabine e Público, foi outrora co-criador e autor da rubrica À Escuta, no Espalha-Factos, e atualmente assina textos no Rimas e Batidas e, claro está, na Playback, onde é um dos fundadores e editores.
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